Enquanto a violência do
autoproclamado Estado Islâmico volta-se contra os cristãos, os yazidis e
outras minorias, muitas vozes se unem em condenação. Entre estas, destacam-se
as do mundo muçulmano, dos líderes religiosos da Grã Bretanha, ou do King
Abdullah Bin Abdulaziz International Centre for Interreligious and
Intercultural Dialogue (KAICIID), com sede em Viena, passando pelos
intelectuais e jornalistas de várias latitudes, até a comovente manifestação
por parte das pessoas simples. A condenação é unânime. Os fanáticos manipulam o
islã, transgridem o Alcorão e traem a religião que dizem professar. Isso faz
lembrar o discurso do professor Ratzinger em Ratisbona.
No dia 12 de setembro de 2006, Joseph Ratzinger,
atualmente Papa Emérito Bento XVI, visitou a Universidade de Ratisbona, onde
havia sido professor. Ali pronunciou um memorável discurso que hoje ressoa com
força. Falou da vocação natural das religiões à justiça e à paz, cuja
realização depende da articulação correta entre a fé e a razão, um dos grandes
tópicos da sua Teologia e do seu Magistério. Explicou que, quando falta o
diálogo, apresentam-se as patologias da razão e da religião que fazem
escorregar, ao extremo, rumo ao fanatismo. Diante do despertar da
irracionalidade misturada ao fundamentalismo, lançou um desafio aos muçulmanos
para condenar a violência como meio de impor a fé, sem aliviar também para os
cristãos.
O Papa Emérito Bento XVI tinha colocado o
dedo na ferida. Três lições devem ser lembradas. Por um lado, o mundo midiático
e intelectual do Ocidente, que se diz expressão da tolerância e da
liberdade, lançou-se com violência irracional contra Ratzinger, acusando-o de
ser fanático e provocador, quando na verdade tinha convidado ao diálogo na
razão. Por outro lado, muçulmanos também lançaram condenações. No fim, todos
têm de dar razão a Ratzinger. Tanto um quanto o outro mostraram que sofrem das
patologias descritas no discurso de Ratisbona. A reação mais interessante e
decisiva foi a do islã. Um grupo de líderes e intelectuais muçulmanos
assinou uma carta na qual eles acolhiam o desafio do diálogo. O epicentro
aconteceu no Reino da Jordânia, mas se estendeu rapidamente a várias latitudes.
Nessa carta, apesar de algum desacordo com Ratzinger, foram condenados aqueles
que pretendiam impor com a violência “sonhos utópicos nos quais o fim justifica
os meios”.
É certo dizer que a aula e a carta não deram
início ao diálogo entre os cristãos e os muçulmanos, mas sem dúvida foram um
fator importante para promovê-lo a níveis nunca vistos antes. Hoje certamente
este diálogo está dando frutos não apenas entre certas elites, mas também entre
as pessoas comuns, que antes de aparecer estes fanáticos tinham feito a
convivência interreligiosa como a maneira natural de ser e hoje protestam
porque querem continuar a viver da mesma maneira. Esta é a voz mais forte entre
aquelas que podem ser escutadas. O encontro entre o povo simples e a
intelectualidade enche de esperança. Quando este relacionamento se alimenta de
paciência e constância, gera movimentos culturais potentes.
A memorável aula em Ratisbona teve
outras consequências que hoje podemos observar. As palavras de Ratzinger deram
maior impulso a uma ideia que nasceu da realidade dos percursos religiosos do
século XIX e da primeira metade do século XX, vistos à luz do Evangelho,
expressos claramente no Concílio Vaticano II, alimentados pelo Magistério
pontifício sucessivo e articulado ao melhor da diplomacia da Santa Sé.
Deseja-se fazer da liberdade religiosa uma das pedras angulares do Direito e
das relações internacionais. Aqui se encontra o constante esforço da Igreja por
favorecer a voz dos líderes e dos movimentos religiosos que buscam a paz
mediante a justiça, de modo que se gerem âmbitos de convivência harmoniosa em
cada sociedade, iniciativa chamada genericamente de: “o espírito de Assis”. A
liberdade religiosa deve se tornar cultura com o apoio das políticas públicas
dos vários Estados. Um dos mais importantes promotores desta proposta, para
buscar um exemplo significativo, foi o doutor Thomas Farr, que dirige o
Religious Freedom Project no Berkeley Center for Religion, Peace and World
Affair da ‘Universidade de Georgetown. Infelizmente nem os Estados Unidos nem a
União Europeia quiseram escutar a aula de Ratisbona, ou a proposta da Igreja,
muito menos as excelentes razões articuladas por acadêmicos e diplomatas de
vários lugares. Quando as religiões cruzam seus caminhos, o que acontece
continuamente, perdem o sentido da realidade, cegas pela própria arrogância. As
tentativas de voltar à razão são interpretadas como uma violação impetrata pelo
secularismo radical. É um pecado.
O Ocidente laico – políticos,
intelectuais e meios de comunicação – desdenhou a proposta e, sem querer,
tornou-se cúmplice, por omissão, do fundamentalismo que manipulou o
islamismo até criar uma ideologia do extermínio. A sua falta de compreensão é
tal que tentou manter o silêncio diante do sacrifício dos cristãos e de outras
minorias no Oriente Médio, mas a dura realidade é imposta. Somente ações
multilaterais baseadas em uma estratégia que faz da liberdade religiosa e do
diálogo interreligioso as próprias pedras angulares poderá trazer paz, justiça
e estabilidade no Oriente Médio. Ratzinger tinha razão para além da aula de
Ratisbona. Nas primeiras linhas do seu livro “Introdução ao Cristianismo”, traz
as palavras de Kierkegaard sobre o palhaço na aldeia em chamas. Um circo se
encontrava na periferia de um vilarejo, e de repente pegou fogo. O patrão
ordenou ao palhaço que colocasse a roupa de cena para avisar do perigo
eminente. Os habitantes, além de escutá-lo, riam dele tornando em vão o seu
esforço. Quando conseguiram reagir era tarde demais. O vilarejo foi consumido
pelas chamas. Para o Oriente Médio é mais do que uma simples parábola.
De qualquer forma, Ratzinger estava
longe de exortar ao desânimo. A sua Teologia e o Magistério Pontifício foram um
ponto de esperança, de alta inteligência. O seu apelo se encontra no realismo e
na esperança. A situação atual de quem evangeliza na cultura da indiferença, na
verdade, tem pouca coisa de novo. Como Igreja, não compartilhamos o nosso destino
com o palhaço, mas com os santos e os profetas que pisaram na terra. Assim diz
Jeremias: “A palavra do Senhor tornou-se para mim motivo de vergonha e gozação
o dia todo. Eu me dizia: ‘Não pensarei mais nele, não falarei mais no seu
nome!’ Era como se houvesse no meu coração um fogo ardente, fechado em meus
ossos. Estou cansado de suportar, não aguento mais!”, (Jr 20, 8-9). Este é um
“fogo” que Jesus lançou no mundo e que queria tanto ver arder. A aula de Ratisbona se
transformou em uma evocação. O Reino de Deus parece uma semente que, uma vez
colocada na terra, cresce dia e noite mesmo se o trabalhador não percebe, até
dar frutos abundantes.
Fonte: Portal Aleteia, por
Jorge Traslosheros
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