É opinião generalizada e
sentir comum entre os homens que o depósito, isto é, um bem que recebemos para
guardar, tem qualquer coisa de sagrado e que o devemos conservar para quem
no-lo confia não somente por fidelidade mas por uma espécie de sentimento religioso.
Por isso o grande Santo Ambrósio nos ensina no livro 29 de seus Ofícios que
era piedoso costume estabelecido entre os fiéis o de trazer aos bispos e a seu
clero aquilo que se queria guardar com mais cuidado, para que fosse colocado
junto ao altar, em virtude da santa persuasão em que estavam de que não havia
melhor lugar para guardar um tesouro do que aquele ao qual o próprio Deus
confiou a guarda dos seus, isto é, os santos mistérios.
Este costume se tinha introduzido na Igreja a
exemplo da sinagoga antiga. Lemos na História Sagrada que o augusto templo de
Jerusalém era lugar de depósito para os judeus. Autores profanos também nos
ensinam que os pagãos tributavam esta honra a seus falsos deuses, colocando
seus depósitos nos templos e confiando-os a seus sacerdotes, como se a própria
natureza das coisas nos ensinasse que o respeito ao depósito tem algo de
religioso e que não pode estar mais bem colocado do que nos lugares santos onde
se reverencia a Divindade, nas mãos daqueles que a religião consagra.
Ora, se jamais existiu depósito que merecesse
tanto ser chamado santo, santamente guardado, é este de que falo, que a
providência do Pai confia à fé do justo José, tanto assim que sua casa se
assemelha a um templo porque Deus aí se digna habitar e entregar-se a Si
próprio em depósito. José deve ter sido, portanto, consagrado a fim de guardar
tão santo tesouro. E realmente o foi, cristãos: seu corpo pela continência, sua
alma por todos os dons da graça. [...]
No projeto que me proponho, o de apoiar os
louvores a São José, não em conjeturas duvidosas mas em doutrina sólida tirada
das Escrituras divinas e dos Padres seus intérpretes fiéis, nada de mais
conveniente posso fazer, na solenidade deste dia, do que apresentar este grande
santo como um homem que Deus escolheu entre todos os outros para lhe pôr nas
mãos Seu tesouro e fazê-lo, aqui na Terra, seu depositário. Pretendo fazer ver
hoje que nada melhor lhe convém, que nada existe tão ilustre e que esse belo
título de depositário, desvendando-nos os desígnios de Deus sobre esse
bem-aventurado patriarca, nos mostra a fonte de todas as graças e o fundamento
seguro de todos os louvores.
Primeiramente, cristãos, é-me fácil
fazer-lhes ver o quanto esta qualidade é, para ele, honra, porque, se o título
de depositário já inclui a nota de estima e testemunho de
probidade, se para confiar um depósito costumamos escolher entre nossos amigos
aquele cuja virtude é mais reconhecida, cuja fidelidade é mais comprovada,
enfim o mais íntimo e mais confidente, qual não será glória de São José, que
Deus fez depositário não somente da bem-aventurada Virgem Maria, cuja pureza
angélica a torna agradável a Seus olhos, mas ainda de Seu próprio Filho, único
objeto de suas complacências, única esperança de nossa salvação: de modo que guardando
a pessoa de Jesus Cristo, São José é instituído depositário do tesouro comum de
Deus e dos homens. Que eloqüência poderá igualar a grandeza e a majestade desse
título?
Então, fiéis, se esse título é tão glorioso e
vantajoso àquele a quem devo hoje fazer o panegírico, é preciso que eu mesmo
penetre em tão grande mistério com o socorro da graça; e que, procurando nas
Escrituras o que aí lemos sobre José, vos faça ver que tudo converge para esta
bela qualidade de depositário. Efetivamente encontro nos Evangelhos três
depósitos confiados ao justo José pela Providência divina, e ali também
encontro três qualidades que refulgem entre as outras e que correspondem a
esses três depósitos. É o que precisamos explicar por ordem. Segui, por favor,
atentamente.
O primeiro de todos os depósitos
que foi confiado à sua fé (o primeiro na ordem do tempo) é a santa virgindade
de Maria, a qual São José devia conservar intacta sob o véu sagrado do seu
matrimônio, que ele sempre guardou santamente como um depósito sagrado que não
lhe era permitido tocar. Eis o primeiro depósito.
O segundo, o mais augusto, é a
pessoa de Jesus Cristo, que o Pai celeste depõe em suas mãos a fim de que lhe
sirva de pai, ao Santo Menino que não o tem na Terra. Vede, desde já, cristãos,
dois grandes, dois ilustres depósitos confiados ao zelo de São José. Mas
observo ainda um terceiro, que acharão admirável, se eu conseguir
explicá-lo com clareza. Para isso é preciso compreender que o segredo é uma
espécie de depósito. Trair o segredo de um amigo é como violar a santidade do
depósito. Pelas leis humanas sabemos que, se alguém divulga o segredo de
um testamento a ele confiado, pode ser acusado de ter violado o depósito: Depositi
actione tecum agi posse, dizem os juristas. É evidente, pois, a razão por
que o segredo é como um depósito. Por onde podemos facilmente compreender que,
se José é o depositário do Pai eterno, é porque Este lhe contou o Seu segredo.
Que segredo? Um segredo admirável: a encarnação de Seu Filho.
Assim, porque, como sabemos, era desígnio de
Deus esconder Jesus Cristo do mundo até que Sua hora houvesse chegado, São José
foi escolhido não somente para O guardar mas também para O esconder. Por isso
lemos no Evangelista (S. Lucas 2, 33) que José, com Maria, admirava tudo o que
se dizia do Salvador, mas não lemos que ele falasse, porque o Pai eterno,
desvendando-lhe o mistério, fez dele um segredo sob a obrigação do silêncio.
Este segredo é o terceiro depósito que o Pai acrescenta aos outros dois.
Segundo o que nos diz o grande São Bernardo, Deus quis confiar à sua fé o
segredo mais santo de seu coração: Cui toto committeret secretissimum
atque sacratissimum sui cordis arcanum (Super Missus est — hom.
2, no 15). Como sois querido de Deus, ó incomparável José, já que Ele a
vós confia esses três grandes depósitos: a Virgindade de Maria, a pessoa de Seu
Filho único e o segredo de Seu mistério!
Mas não julgueis, cristãos, que ele
desconhecia essas graças. Se Deus o honrava com aqueles três depósitos, de sua
parte José apresentava a Deus, em sacrifício, três virtudes que observo no
Evangelho. Não duvido que sua vida tenha sido ornada com todas as outras, mas
eis aqui as três principais virtudes que Deus quer que vejamos na sua
Escritura. A primeira é a pureza, que aparece pela continência no seu
matrimônio; a segunda, sua fidelidade; a terceira, sua humildade e seu amor à
vida obscura. Quem não verá a pureza de São José nesta santa sociedade de
desejos pudicos, nesta admirável correspondência à Virgindade de Maria e em
suas bodas espirituais? A segunda, sua fidelidade, aparece nos cuidados
infatigáveis que tem para com Jesus no meio das tantas adversidades que por
todas as partes seguem esse Menino divino desde o começo de sua vida. A terceira,
sua humildade, vê-se em que, possuindo tão grande tesouro por uma graça
extraordinária do Pai eterno, longe de se vangloriar por esses dons ou de
publicar suas vantagens, se esconde tanto quanto pode aos olhos dos mortais,
contemplando, em gozo pacífico com Deus, o mistério que lhe fora revelado e as
riquezas imensas que tem sob sua guarda.
Ah! Quanta grandeza descubro aqui e como aqui
descubro tão importantes instruções! Quanta grandeza vejo nesses depósitos,
quantos exemplos vejo nessas virtudes! E como a explicação desse assunto tão
belo será glorioso para São José e frutuoso para todos os fiéis!
Fonte: Bossuet in “PERMANÊNCIA”,
ano XI, março/abril, números 112/113.
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