É verdade que a vida do
homem sobre a Terra é luta e aridez, cruz e sangue, mas é bem verdade também
que existem os momentos de oásis, onde o próprio Deus e outras criaturas nos
concedem a alegria. A dupla imagem do deserto que muda conforme as chuvas ou a
seca, favorece uma dupla teologia. Seu simbolismo tanto evoca a ideia de
presença de Deus, quanto de tentação ou prova. Em seu aspecto de terra
habitualmente sem água, sem vegetação nem habitantes é compreendido como lugar
povoado por demônios (Lv 16,10; Lc 8,29; 11,24), sátiros (Lv 17,7) e animais
maléficos (Is 13,21; 14,23; 30,6; 34,11-16; Sf 2,13-14). Quer dizer, nessa
acepção, o deserto se opõe à terra habitada, da mesma forma que a maldição se
opõe à bênção. Na vida, teremos aridez e refrigério, depende das chuvas,
depende da luta.
Na tradição bíblica, em seu conjunto, o
deserto tem um duplo sentido que se complementa. Por um lado como lugar da
eleição, mas também como meio de purificação, constituindo em ambos os aspectos
uma preparação imediata para a entrada na Terra Prometida. Nós também somos
eleitos num deserto, afim de que nossas vidas sejam provadas e comprovadas, mas
também passemos por tentações que medirão a temperatura de nossa fé e de nossa
caridade para com Deus e o próximo. Muitos caem diante das provas e tentações
porque não percebem que estas fazem parte do processo do viver. São faces da
moeda da vida. Quem não compreende tal dinâmica, acreditará que a vida só é
benefício e glória e ao buscá-los e não encontrar ficará perplexo, angustiado e
entristecido. Há tantos que se desesperam quando não vencem, não triunfam...
Midbar,
“deserto”, vem de Dabar, “palavra”.
Assim, o deserto tem outro atrativo que está relacionado às palavras. A
linguagem é essencial para o ser humano, mas ali não se verbaliza muitas coisas
e por isso se escuta. Tanto a Palavra de Deus, como a palavra da sedução,
habitam no deserto. Se escutarmos a palavra de Deus, esta se tornará como a
chuva, reverdeja tudo (Is 55,10-11). Se escutarmos a palavra da sedução, esta
será semelhante ao siroco, vento quente (cf. Ex 10,13), que seca toda a
vegetação.
Para Israel, em última instância, no deserto
está a presença de Deus. Quando o povo no deserto faz a pergunta se “Está ou
não YHWH no meio de nós?”, Deus responde a Moisés: “Eis que estarei ali diante
de ti sobre a rocha em Horeb; ferirás a rocha, e dela sairá água, e o povo
beberá” (Ex 17, 6-7). A água da rocha é a resposta ao povo desconfiado que
perguntava pela presença de Deus. A água que jorra generosa é a certeza de que
Deus é Emmanuel, que está e estará sempre com o povo, saciando sua sede, de uma
maneira total e integral, individual e comunitária. Os israelitas têm sede no
deserto e somente Deus pode saciá-los, porque Ele nos fez para Si.
No deserto habita o Deus da palavra, Aquele
que não pode ser visto, mas ouvido. A palavra mais importante do homem é o “Amém”,
mesmo na fragilidade e limitação. A que é pronunciada por Deus é aman (carregar).
O diálogo, a palavra de ambos, é emunah (fidelidade). O ser humano é convidado
a escutar a palavra chave sobre sua própria vida, ouvida dos lábios de Deus que
fala no silêncio. Essa palavra é aquilo que define a humanidade aos olhos de
Deus, e, portanto, é o que somos agora e o que estamos chamados a ser.
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