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quarta-feira, 22 de abril de 2015

A existência de Deus frente às contradições humanas


  Li recentemente as afirmações de um intelectual alemão que, em relação à "questão de Deus", se dizia agnóstico e, ao mesmo tempo, acrescentava que não se poderia nem provar nem excluir totalmente a existência de Deus, de modo que esse problema permaneceria sempre em aberto. No entanto, declarava-se firmemente convencido da existência do inferno: bastava-lhe ligar a televisão para comprová-lo sem sombra de dúvida.

  Se a primeira parte dessa afirmação corresponde plenamente ao sentir moderno, a segunda parece extravagante, ao menos à primeira vista. Como é possível crer no inferno se Deus não existe? Mas, se considerarmos essas palavras com um pouco mais de atenção, veremos que encarnam uma certa lógica. O inferno é, por definição, viver na ausência de Deus. Onde Deus não está, ali está o inferno. Certamente, não é tanto o espetáculo diário da televisão que nos fornece a prova, quanto um olhar sobre o século que terminou e que nos deixou palavras como "Auschwitz" ou "Arquipélago Gulag", e nomes como Hitler, Stalin, Pol Pot. Esses infernos foram construídos para preparar um mundo futuro de homens auto-suficientes que não teriam nenhuma necessidade de Deus.

  Mas onde Deus não está, surge o inferno, e o inferno persiste, muito simplesmente, pela ausência de Deus. Pode-se chegar a esse extremo também de maneiras subtis, que quase sempre afirmam que o que se busca é o bem dos homens. Hoje, quando se comercializam órgãos humanos, quando se fabricam fetos para dispor de órgãos de reposição ou para promover o avanço da ciência e da prevenção médicas, muitos consideram implícito o carácter humanitário dessas práticas. Mas o desprezo pelo homem que esse usar e abusar do ser humano pressupõe, conduz, quer se queira quer não, à descida aos infernos. Isto não significa que não possa haver ou não haja ateus com um grande senso ético.

  Seja como for, atrevo-me a afirmar que essa ética se baseia na luz que emanou um dia do Monte Sinai e que continua a brilhar até hoje: a luz de Deus. Nietzsche tinha razão ao sublinhar que, quando a notícia da morte de Deus se tornasse conhecida por todo o mundo, quando a sua luz se tivesse apagado definitivamente, esse momento seria necessariamente terrível. O cristianismo não é uma filosofia complicada e envelhecida com o passar do tempo, não é uma imensa coleção de dogmas e preceitos: a fé cristã consiste em sermos tocados por Deus e sermos as suas testemunhas.

  Precisamente por isso podemos dizer: a Igreja existe para que Deus, o Deus vivente, seja anunciado, para que o homem possa aprender a viver com Deus, sob o seu olhar e em comunicação com Ele. A Igreja existe para evitar o avanço do inferno sobre a terra e para fazer com que esta se torne mais habitável à luz de Deus.. Graças a Ela, e somente graças a Ela, a terra será humana. Nem que seja apenas por este motivo, a Igreja deve continuar a existir, porque a sua eventual desaparição arrastaria a humanidade para o torvelinho das trevas, da escuridão, até à destruição de tudo o que torna humano o homem. [...] Sem Deus, o mundo não consegue iluminar-se. A Igreja serve ao mundo fazendo com que Deus viva nela, permitindo que Ele transpareça n'Ela, e estando pronta assim para levá-lo à humanidade.


(Cardeal Joseph Ratzinger em ‘Testigos de Ia luz de Dios’, in La Razôn,23.04.2001)

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