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terça-feira, 9 de abril de 2013

O inferno (segunda parte)



  A Tradição cristã foi enfática em atestar a existência do inferno. Entre outros, podem-se notar os dizeres de São Policarpo († 1556), bispo de Esmirna, que, ameaçado de martírio pelo fogo, respondia ao procônsul: “Tu me ameaças com um fogo que só arde uma hora e pouco depois se extinguirá: com efeito, ignoras que o fogo do Juízo e da pena eterna está reservado aos ímpios”(Martírio de S. Policarpo 2, 3).

  O autor anônimo da Epístola a Diogneto (século III), referindo-se aos mártires, diz o seguinte: “Verás, ainda na terra, que Deus reina nos céus. Começarás a falar dos seus mistérios. Amarás e admirarás os que são torturados por não quererem renegar a Deus. Condenarás a impostura e o erro do mundo, quando tiveres compreendido que o verdadeiro viver está no céu, e, desprezando aquilo que aqui parece morte, temeres a morte real reservada aos condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Estão admirarás os que suportam, por causa da justiça, o fogo momentâneo, e os considerarás felizes quando tiveres compreendido tal fogo”(10, 7s).

  Verdade é que nos séculos III-IV existiu na Igreja uma corrente dita origenista”(discípulos de Orígenes de Alexandria, † 250), que defendia a temporalidade do inferno e a restauração (apokatástasis)[1] de todas as criaturas no estado de bonança inicial. Tal corrente, sustentada principalmente por monges de pouca cultura, foi condenada pelo Sínodo regional de Constantinopla em 543, Sínodo que o Papa Virgílio aprovou. Eis o cânon mais significativo de tal assembléia: “Se alguém disser ou sustentar que o suplício dos demônios e dos homens ímpios é temporal, e terá fim após certa duração, ou que haverá a restauração e reintegração dos demônios ou dos homens ímpios, seja anátema” (D.- S nº 411).

  Dentre outras declarações do magistério da Igreja, citamos aqui o Símbolo de Fé atribuído a S. Atanásio e que deve datar do século V: “Os que tiverem praticado o bem, irão para a vida eterna; os que tiveram cometido o mal, irão para o fogo eterno. Tal é a fé católica, e quem não a professa fiel e firmemente, não se pode salvar”(D.- S nº 76).

  Em nossos tempos, o Papa Paulo VI, tendo em vista hesitações existentes sobre pontos da fé católica, promulgou aos 9 de junho de 1968 o “Credo do Povo de Deus”, no qual se lê o seguinte trecho: “Jesus Cristo ao céu, e virá de novo, mas desta vez com glória, para julgar os vivos e os mortos, cada um segundo os seus méritos; os que corresponderam ao amor e à misericórdia de Deus, irão para a vida eterna; os que os recusaram até o fim, irão para o fogo que não se extinguirá jamais”(nº 12).

  Ainda mais solenemente a Igreja se pronunciou no Concílio do Vaticano II, mediante a Constituição Lumen Gentium (datada de 1965), na qual se faz a seguinte declaração: “Como desconhecemos o dia e a hora, conforme a advertência do Senhor, vigiemos constantemente, a fim de que, terminado o único curso de nossa vida terrestre (cf. Hb 9, 27), possamos entrar com Ele para as bodas e mereçamos ser contados com os benditos  (cf. Mt 25, 31-46) e não sejamos mandados, como servos maus e preguiçosos (cf. Mt 25, 26), para o fogo eterno (cf. Mt 22, 13 e Mt 25, 30)” (nº 48).

  Este texto faz ressoar as metáforas das Escrituras Sagradas para afirmar a dupla possibilidade de existência — bem-aventurada ou não — após a morte. Além do quê, rejeita a tese reencarnacionista, afirmando um só curso de vida terrestre para cada indivíduo humano.

  De resto, a proposição da existência do inferno fora preparada na mente dos antigos cristãos por premissas da literatura greco-romana que, do seu modo, professavam um castigo póstumo dos malvados em lugares subterrâneos  e mediante o fogo. A propósito convém notar o que Minúcio Félix, autor cristão do século III: “Os homens são informados pelos livros dos sábios e pelos cânticos dos poetas a respeito desse rio de fogo, cujo percurso sinuoso e flamejante rodeia de muitos círculos os pântanos do Estige, que isso tudo está reservado para suplícios eternos, eles o souberam pelas indicações dos demônios e os oráculos dos profetas. Eis por que, entre eles, Júpiter, mesmo jura respeitosamente pelas ripas em chamas e pelo abismo sombrio: sabe de antemão que pena está destinada a ele e a seus adeptos e estremece de horror. Tais tormentos não terão nem medida nem termo. Lá um fogo inteligente queima os membros e os restaura; dilacera-os e alimenta-os. Assim como o fogo dos relâmpagos toca os corpos sem os destruir, como o fogo do Etna, do Vesúvio e outros semelhantes ardem sempre, sem jamais se extinguir, assim esse fogo vingador não se nutre com detrimentos daquilo que ele corrói, mas devora os corpos e se alimenta sem os consumir” (Octavius 35).

  Michel Carrouges, que estudou atentamente a literatura clássica, chega a concluir que a imagem do inferno “é em nós um arquétipo que não pode ser banido. É um verdadeiro aspecto que sobe das regiões mais íntimas e mais profundas da natureza humana... desde a mais alta antigüidade até os tempos modernos, uma longa série de quadros suscita diante de nós o horizonte de um mundo maldito, império dos monstros e do horror absoluto” (L’Enfer. Paris 1950, p. 13).

  Não há dúvida, as descrições da literatura antiga não cristã estão imbuídas de muita fantasia e teatralidade, de sorte a provocar certo menosprezo de um conceito que, quanto podemos julgar, é muito espontâneo e generalizado na consciência dos povos. A própria literatura cristã, durante séculos, acentuou com colorido muito vivo os aspectos trágicos do inferno, recorrendo a imagens “dantescas”, que, em vez de esclarecer a verdade da fé, só contribuía-la, dificultando a aceitação da mesma por parte do grande público. Eis por que nosso intento, nas páginas seguintes, será depurar de metáforas imaginosas o conceito de inferno, pondo em relevo o seu genuíno sentido; através desse estudo, perceber-se-á que o inferno, longe de ser incompatível com o amor de deus, se coaduna perfeitamente com este, quase como decorrência lógica do fato de que ele nos ama irreversivelmente.


[1]  A palavra Apokatástasis (restauração) ocorre em At 3, 21, mas em sentido diverso do que lhe atribuíram os origenistas. A restauração de todas as coisas em At 3, 21 significa, como se deduz do contexto. A realização definitiva de tudo o que Deus disse pela boca dos santos profetas.

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