Mesmo
sem noção clara do que os esperava após a morte, nem certeza da ressurreição
final, é admirável a fé e a obediência à vontade de Deus dos antigos patriarcas
e «justos» do Antigo Testamento. E quantos «justos» ainda hoje, sem conhecimento
do Evangelho, se prostram em humilde adoração a Deus, procuram cumprir a sua
Vontade, e se submetem docilmente a ela! Benditas almas, que, sem saberem qual
o prêmio que as espera depois, reconhecem que toda a nossa existência deve ser
uma contínua ação de graças, em absoluta submissão ao Criador! Que profunda
inteligência revela esta consciência de serem criaturas! Vão ao essencial, e
nele vivem dia após dia, ano após ano, a caminho do mistério sublime de um
poder supremo, de uma sabedoria infinita, de uma realidade eterna por que
anseiam, sem imaginarem o que Deus prepara para aqueles que O amam.
Manifestação
dessa imensa sensatez é a vocação «religiosa» ou «contemplativa», que desde
sempre, em todos os povos, se verifica. E que não podia faltar na Igreja,
evidentemente. Não há «vocação» mais humana do que a contemplativa, e com razão
se rodeiam de honras aqueles que «morrem para o mundo», afastando-se do viver
mais comum, para se consagrarem exclusivamente ( na medida em que é possível na
terra ) à adoração de Deus, antecipando de algum modo a condição celestial. E
dá-se o paradoxo de que a mais escondida e silenciosa das vidas é a que mais
alto proclama o que vale a pena: a união definitiva com Ele.
Para
todos nós, porém, é certo que e nossa verdadeira vida «está escondida, com
Cristo, em Deus» (Cl 3, 3), e que a todos nos corresponde, portanto, a vocação
«contemplativa»; nem de outro modo amaríamos a Deus «com todo o entendimento»
(Mt 22, 37). Se até entre pagãos a inteligência necessariamente perscruta o
Além, quanto mais este há-de ser objecto de frequente meditação entre os
cristãos!
Na
grande festa da Assunção de Maria ao Céu em corpo e alma, a Igreja convida-nos
precisamente a levantar os olhos ao Céu. Os puritanos que censuram nos fiéis a
esperança do prêmio final, no Paraíso, esquecem que não é egoísmo esperar o
Amor, nem sonhar com ele. Porque de um sonho se trata, sem dúvida; não por
irrealismo, por abuso ou excesso de imaginação; mas, pelo contrário, porque
todo o bem e todo o júbilo imagináveis ficam a uma distância incomensurável da
realidade eterna. Fazem muito bem os que nele pensam: não nos incita tantas
vezes Nosso Senhor à vigilância para conseguirmos entrar no Reino dos Céus? E
como poderíamos estar alerta, sem pensar no que nos espera? Como fortemente
insiste o Santo Padre no seu livro sobre «Jesus de Nazaré», o «Reino» prometido
é o próprio Deus! A consideração do Céu não será, afinal, uma continuidade
lógica e inevitável da contemplação de «Deus connosco» já nesta vida?
«Considera
o que há de mais formoso e grande na terra..., o que apraz ao entendimento e às
outras potências..., o que é recreio da carne e dos sentidos... E o Mundo, e os
outros mundos que brilham na noite; o Universo inteiro. – E isso, junto com
todas as loucuras do coração satisfeitas..., nada vale, é menos que nada, ao
lado deste Deus meu! – teu! – tesouro infinito, pérola preciosíssima,
humilhado, feito escravo, aniquilado sob a forma de servo no curral onde quis
nascer, na oficina de José, na Paixão e na morte ignominiosa e na loucura de
Amor da Sagrada Eucaristia» («Caminho», 432).
Lança
a tua imaginação ao mais belo e ao melhor... e acertarás: o Céu é muito mais,
mas contém realmente tudo isso que sonhas. Pelo facto de não ires além do que a
tua experiência te permite, não te enganas. Pelo facto de não atingires a
grandeza infinita da «alegria do teu Senhor», não deixes de a ter presente,
porque é verdade, e porque te ajudará a aquilatar constantemente o valor
relativo de tudo que te acontece.
Quando
o «Titanic» se afundou, Chesterton fez notar que, independentemente das
responsabilidades, a atribuir a quem quer que fosse, pelo naufrágio, o que
saltava à vista era a desproporção entre os meios destinados ao luxo e
entretenimento dos passageiros, e os meios de salvação de que dispunha o
paquete. As suas comodidades eram tais que fizeram esquecer a passageiros e à
tripulação a realidade elementar de que era apenas um navio, afrontando os
tremendos desafios do Oceano. A lembrança do Céu, que é a «saudade de Deus»,
não rouba generosidade ao fiéis cristãos, mas, além disso, faz com que nunca se
esqueçam de que são «viatores», passageiros da barca de Pedro, sobre o perigoso
mar da vida, a caminho da «Pátria». Portanto, vivamos já como «cidadãos do céu,
donde esperamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, o Qual transformará o
nosso corpo miserável, fazendo-o semelhante ao seu corpo glorioso» (Fl 3,
20-21), e onde nos encontraremos, em Deus, com a nossa Mãe Santíssima, e todos
os Anjos e Santos.
Hugo de AZEVEDO
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