Sendo
a fé um dom, como pode ser motivo de educação? Não pode realmente ser ensinada,
mas sim irradiada. Os que a possuem podem significar a estrela-guia, a
perseverança num encontro difícil de suceder, mas cuja esperança comove todo o
nosso ser. É possível que a Igreja se volte para esse apostolado da fé que foi
extremamente importante no seu começo. Não o velho sistema de grupos sectários
que são o modelo dos processos políticos e que, quando se afirma um movimento e
este toma amplitude, se eliminam. Não é isso. Trata-se de focos de comunicação
que dispensam a organização premeditada e até a linguagem elaborada, o discurso
piedoso e a erudição duma exegese. Um interessar a alma na fé sem recorrer ao
preconceito da santidade.
Descobrir a imensa novidade da fé num mundo em que o
próprio cristão vive de maneira pagã e singularmente a coberto dos antigos
textos que esqueceu ou que desconhece completamente.A prova de que o cristão
vive como um bárbaro é o sentido que tomou a arte religiosa. Não é raro
encontrar nas salas de convívio burguesas, juntamente com a televisão, ou a
mesa de jogo, ou a instalação estereofônica para o gira-disco, um Cristo
crucificado sobre a lareira, ou uma Virgem dourada em cima da cômoda de
vinhático; ou objetos do culto, espalhados numa intenção decorativa, quando
não um quadrinho de ex-voto que se foi buscar a uma capela remota ou à loja de
um antiquário.
E depois essas mesmas pessoas, ao abrigo duma
cultura sentimental, promovem toda uma campanha contra a modificação dos ritos,
e censuram os prelados que caminham no sentido de não objectivar Deus e de não
o integrar na platitude da imaginação humana. Deus significa luz; ser filho de
Deus é, pois, ter origem na luz. Esta é uma metáfora que utilizavam os essênios
do Qumran. Designa uma energia interior que ultrapassa a experiência da pessoa
e o conceito de pessoa.
Não é fácil, para uma sociedade humana estreitamente
ligada a uma objetivação de Deus que o mostra com uma consciência semelhante à
nossa e que envolve todos os nossos articulados de vida, não é fácil, repito,
desprender-se duma espécie de Deus nacional e tribal; como de resto a Bíblia o
representa; como o criador dum mundo limitado em comparação com o que
conhecemos hoje. Um príncipe, promulgador de decretos e que prometia como
recompensa da obediência um lugar à sua direita, como se prometia aos áulicos
deste mundo.
Cem anos depois da morte de Jesus, surgiu no
Ocidente a ideia de Cristo como filho de Deus, concreta manifestação de Deus.
Mas São Paulo evitou sempre confundir Cristo com o Deus Único; a sua forte
convicção monoteísta impedia-o de admitir uma incarnação de Deus. De certa
maneira, o cristão da atualidade encontra-se nessa mesma posição. Ele sabe que
há muito de idolatria numa explicação objetiva de Deus. Idolatria a que
chamamos às vezes ciência, ou história, ou progresso, mas que não satisfaz a fé
na nossa luz interior.
A educação da fé tende a ser a descoberta
dessa energia interior agora em vias de se desembaraçar dos velhos detritos
mágico-religiosos que eram o suporte de aspirações e de desejos quase sempre
inscritos no nosso quotidiano.
Agustina
Bessa-Luís, in “Contemplação Carinhosa da Angústia”
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