1.
Nesta minha primeira Mensagem para o Dia Mundial da Paz, desejo formular a
todos, indivíduos e povos, votos duma vida repleta de alegria e esperança. Com
efeito, no coração de cada homem e mulher, habita o anseio duma vida plena que
contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os
outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que
devemos acolher e abraçar.
Na realidade, a fraternidade é uma dimensão
essencial do homem, sendo ele um ser relacional. A consciência viva desta
dimensão relacional leva-nos a ver e tratar cada pessoa como uma verdadeira
irmã e um verdadeiro irmão; sem tal consciência, torna-se impossível a
construção duma sociedade justa, duma paz firme e duradoura. E convém desde já
lembrar que a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da
família, graças sobretudo às funções responsáveis e complementares de todos os
seus membros, mormente do pai e da mãe. A família é a fonte de toda a
fraternidade, sendo por isso mesmo também o fundamento e o caminho primário
para a paz, já que, por vocação, deveria contagiar o mundo com o seu amor.
O número sempre crescente de ligações e
comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a consciência da
unidade e partilha dum destino comum entre as nações da terra. Assim, nos
dinamismos da história – independentemente da diversidade das etnias, das
sociedades e das culturas –, vemos semeada a vocação a formar uma comunidade
feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros. Contudo,
ainda hoje, esta vocação é muitas vezes contrastada e negada nos fatos, num
mundo caracterizado pela «globalização da indiferença» que lentamente nos faz
«habituar» ao sofrimento alheio, fechando-nos em nós mesmos.
Em muitas partes do mundo, parece não
conhecer tréguas a grave lesão dos direitos humanos fundamentais, sobretudo dos
direitos à vida e à liberdade de religião. Exemplo preocupante disso mesmo é o
dramático fenômeno do tráfico de seres humanos, sobre cuja vida e desespero
especulam pessoas sem escrúpulos. Às guerras feitas de confrontos armados
juntam-se guerras menos visíveis, mas não menos cruéis, que se combatem nos
campos econômico e financeiro com meios igualmente demolidores de vidas, de
famílias, de empresas.
A globalização, como afirmou Bento XVI,
torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos.[1] As
inúmeras situações de desigualdade, pobreza e injustiça indicam não só uma
profunda carência de fraternidade, mas também a ausência duma cultura de
solidariedade. As novas ideologias, caracterizadas por generalizado
individualismo, egocentrismo e consumismo materialista, debilitam os laços
sociais, alimentando aquela mentalidade do «descartável» que induz ao desprezo
e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados «inúteis». Assim, a
convivência humana assemelha-se sempre mais a um mero “do ut dês” pragmático
e egoísta.
Ao mesmo tempo, resulta claramente que as
próprias éticas contemporâneas se mostram incapazes de produzir autênticos
vínculos de fraternidade, porque uma fraternidade privada da referência a um
Pai comum como seu fundamento último não consegue subsistir.[2] Uma
verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade
transcendente. A partir do reconhecimento desta paternidade, consolida-se a
fraternidade entre os homens, ou seja, aquele fazer-se «próximo» para cuidar do
outro. «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9)
2.
Para compreender melhor esta vocação do homem à fraternidade e para reconhecer
de forma mais adequada os obstáculos que se interpõem à sua realização e identificar
as vias para a superação dos mesmos, é fundamental deixar-se guiar pelo
conhecimento do desígnio de Deus, tal como se apresenta de forma egrégia na
Sagrada Escritura.
Segundo a narração das origens, todos os
homens provêm dos mesmos pais, de Adão e Eva, casal criado por Deus à sua
imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), do qual nascem Caim e Abel. Na
história desta família primigênia, lemos a origem da sociedade, a evolução das
relações entre as pessoas e os povos. Abel é pastor, Caim agricultor. A sua
identidade profunda e, conjuntamente, a sua vocação é ser irmãos, embora
na diversidade da sua atividade e cultura, da sua maneira de se relacionarem
com Deus e com a criação. Mas o assassinato de Abel por Caim atesta,
tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história
(cf. Gn4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens
são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros. Caim, não aceitando a
predileção de Deus por Abel, que Lhe oferecia o melhor do seu rebanho – «o
Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não olhou com agrado
para Caim nem para a sua oferta» (Gn4, 4-5) –, mata Abel por inveja. Desta
forma, recusa reconhecer-se irmão, relacionar-se positivamente com ele, viver
diante de Deus, assumindo as suas responsabilidades de cuidar e proteger o
outro. À pergunta com que Deus interpela Caim – «onde está o teu irmão?» –,
pedindo-lhe contas da sua acção, responde: «Não sei dele. Sou, porventura,
guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). Depois – diz-nos o livro do Gênesis –,
«Caim afastou-se da presença do Senhor» (4, 16).
É preciso interrogar-se sobre os motivos
profundos que induziram Caim a ignorar o vínculo de fraternidade e,
simultaneamente, o vínculo de reciprocidade e comunhão que o ligavam ao seu
irmão Abel. O próprio Deus denuncia e censura a Caim a sua contiguidade com o
mal: «o pecado deitar-se-á à tua porta» (Gn 4, 7). Mas Caim recusa opor-se
ao mal, e decide igualmente «lançar-se sobre o irmão» (Gn 4, 8),
desprezando o projeto de Deus. Deste modo, frustra a sua vocação original para
ser filho de Deus e viver a fraternidade.
A narração de Caim e Abel ensina que a
humanidade traz inscrita em si mesma uma vocação à fraternidade, mas também a
possibilidade dramática da sua traição. Disso mesmo dá testemunho o egoísmo
diário, que está na base de muitas guerras e injustiças: na realidade, muitos
homens e mulheres morrem pela mão de irmãos e irmãs que não sabem reconhecer-se
como tais, isto é, como seres feitos para a reciprocidade, a comunhão e a
doação.
3.
Surge espontaneamente a pergunta: poderão um dia os homens e as mulheres deste
mundo corresponder plenamente ao anseio de fraternidade, gravado neles por Deus
Pai? Conseguirão, meramente com as suas forças, vencer a indiferença, o egoísmo
e o ódio, aceitar as legítimas diferenças que caracterizam os irmãos e as
irmãs?
Parafraseando as palavras do Senhor Jesus,
poderemos sintetizar assim a resposta que Ele nos dá: dado que há um só Pai,
que é Deus, vós sois todos irmãos (cf. Mt 23, 8-9). A raiz da
fraternidade está contida na paternidade de Deus. Não se trata de uma
paternidade genérica, indistinta e historicamente ineficaz, mas do amor
pessoal, solícito e extraordinariamente concreto de Deus por cada um dos homens
(cf. Mt 6, 25-30). Trata-se, por conseguinte, de uma paternidade
eficazmente geradora de fraternidade, porque o amor de Deus, quando é acolhido,
torna-se no mais admirável agente de transformação da vida e das relações com o
outro, abrindo os seres humanos à solidariedade e à partilha ativa.
Em particular, a fraternidade humana foi
regenerada em e por Jesus Cristo, com a sua morte e
ressurreição. A cruz é o «lugar» definitivo de fundação da
fraternidade que os homens, por si sós, não são capazes de gerar. Jesus Cristo,
que assumiu a natureza humana para a redimir, amando o Pai até à morte e morte
de cruz (cf. Fl 2, 8), por meio da sua ressurreição constitui-nos
como humanidade nova, em plena comunhão com a vontade de Deus, com o seu
projeto, que inclui a realização plena da vocação à fraternidade.
Jesus retoma o projeto inicial do Pai,
reconhecendo-Lhe a primazia sobre todas as coisas. Mas Cristo, com o seu
abandono até à morte por amor do Pai, torna-Se princípio
novo e definitivo de todos nós, chamados a reconhecer-nos n’Ele
como irmãos, porque filhos do mesmo Pai. Ele é a própria Aliança, o
espaço pessoal da reconciliação do homem com Deus e dos irmãos entre si. Na
morte de Jesus na cruz, ficou superada também a separação entre os
povos, entre o povo da Aliança e o povo dos Gentios, privado de esperança
porque permanecera até então alheio aos pactos da Promessa. Como se lê na Carta
aos Efésios, Jesus Cristo é Aquele que reconcilia em Si todos os homens.
Ele é a paz, porque, dos dois povos, fez um só, derrubando o muro de
separação que os dividia, ou seja, a inimizade. Criou em Si mesmo um só povo,
um só homem novo, uma só humanidade nova (cf. 2,14-16).
Quem aceita a vida de Cristo e vive n’Ele,
reconhece Deus como Pai e a Ele Se entrega totalmente, amando-O acima de todas
as coisas. O homem reconciliado vê, em Deus, o Pai de todos e,
consequentemente, é solicitado a viver uma fraternidade aberta a todos. Em
Cristo, o outro é acolhido e amado como filho ou filha de Deus, como irmão ou irmã,
e não como um estranho, menos ainda como um antagonista ou até um inimigo. Na
família de Deus, onde todos são filhos dum mesmo Pai e, porque enxertados em
Cristo, filhos no Filho, não há «vidas descartáveis». Todos gozam de igual
e inviolável dignidade; todos são amados por Deus, todos foram resgatados pelo
sangue de Cristo, que morreu na cruz e ressuscitou por cada um. Esta é a razão
pela qual não se pode ficar indiferente perante a sorte dos irmãos.
4.
Suposto isto, é fácil compreender que a fraternidade
é fundamento e caminho para a paz. As Encíclicas sociais
dos meus Predecessores oferecem uma ajuda valiosa neste sentido. Basta ver as
definições de paz da Populorum
progressio, de Paulo VI, ou
da Sollicitudo
rei socialis, de João Paulo
II. Da primeira, apreendemos que o desenvolvimento integral dos povos é o novo
nome da paz[3] e, da
segunda, que a paz é opus solidaritatis, fruto da solidariedade.[4]
Paulo VI afirma que tanto as pessoas como as
nações se devem encontrar num espírito de fraternidade. E explica: «Nesta
compreensão e amizade mútuas, nesta comunhão sagrada, devemos (...) trabalhar
juntos para construir o futuro comum da humanidade».[5] Este
dever recai primariamente sobre os mais favorecidos. As suas obrigações
radicam-se na fraternidade humana e sobrenatural, apresentando-se sob um
tríplice aspecto: o dever de solidariedade, que exige que as nações ricas
ajudem as menos avançadas; o dever de justiça social, que requer a
reformulação em termos mais corretos das relações defeituosas entre povos
fortes e povos fracos; o dever de caridade universal, que implica a
promoção de um mundo mais humano para todos, um mundo onde todos tenham
qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao
desenvolvimento dos outros.[6]
Ora, da mesma forma que se considera a paz
como opus solidarietatis, é impossível não pensar que o seu fundamento
principal seja a fraternidade. A paz, afirma João Paulo
II, é um bem indivisível: ou é bem de todos, ou não o é de ninguém. Na
realidade, a paz só pode ser conquistada e usufruída como melhor qualidade de
vida e como desenvolvimento mais humano e sustentável, se estiver viva, em
todos, «a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum».[7] Isto
implica não deixar-se guiar pela «avidez do lucro» e pela «sede do poder». É
preciso estar pronto a «“perder-se” em benefício do próximo em vez de o
explorar, e a “servi-lo” em vez de o oprimir para proveito próprio (...). O
“outro” – pessoa, povo ou nação – [não deve ser visto] como um instrumento
qualquer, de que se explora, a baixo preço, a capacidade de trabalhar e a
resistência física, para o abandonar quando já não serve; mas sim como um nosso
“semelhante”, um “auxílio”».[8]
A solidariedade cristã pressupõe
que o próximo seja amado não só como «um ser humano com os seus direitos e a
sua igualdade fundamental em relação a todos os demais, mas [como]
a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e
tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo»,[9] como
um irmão. «Então a consciência da paternidade comum de Deus, da
fraternidade de todos os homens em Cristo, “filhos no Filho”, e da presença e
da ação vivificante do Espírito Santo conferirá – lembra João Paulo
II – ao nosso olhar sobre o mundo como que um novo
critério para o interpretar»,[10] para
o transformar. A fraternidade, premissa para vencer a pobreza
5.
Na Caritas
in veritate, o meu Predecessor lembrava
ao mundo que uma causa importante da pobreza é a falta
defraternidade entre os povos e entre os homens.[11] Em
muitas sociedades, sentimos uma profunda pobreza relacional, devido à
carência de sólidas relações familiares e comunitárias; assistimos,
preocupados, ao crescimento de diferentes tipos de carências, marginalização,
solidão e de várias formas de dependência patológica. Uma tal pobreza só pode
ser superada através da redescoberta e valorização de
relações fraternas no seio das famílias e das comunidades, através da
partilha das alegrias e tristezas, das dificuldades e sucessos presentes na
vida das pessoas.
Além disso, se por um lado se verifica uma
redução da pobreza absoluta, por outro não podemos deixar de reconhecer um
grave aumento da pobreza relativa, isto é, de desigualdades entre pessoas
e grupos que convivem numa região específica ou num determinado contexto
histórico-cultural. Neste sentido, servem políticas eficazes que promovam o
princípio da fraternidade, garantindo às pessoas – iguais na sua dignidade
e nos seus direitos fundamentais – acesso aos «capitais», aos serviços, aos
recursos educativos, sanitários e tecnológicos, para que cada uma delas tenha
oportunidade de exprimir e realizar o seu projeto de vida e possa
desenvolver-se plenamente como pessoa.
Reconhece-se haver necessidade também de
políticas que sirvam para atenuar a excessiva desigualdade de rendimento. Não
devemos esquecer o ensinamento da Igreja sobre a chamada hipoteca social,
segundo a qual, se é lícito – como diz São Tomás de Aquino – e mesmo necessário
que «o homem tenha a propriedade dos bens»,[12]quanto
ao uso, porém, «não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente
possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam
beneficiar não só a si mas também aos outros».[13]
Por último, há uma forma de promover a
fraternidade – e, assim, vencer a pobreza – que deve estar na base de todas as
outras. É o desapego vivido por quem escolhe estilos de vida sóbrios e
essenciais, por quem, partilhando as suas riquezas, consegue assim experimentar
a comunhão fraterna com os outros. Isto é fundamental, para seguir Jesus Cristo
e ser verdadeiramente cristão. É o caso não só das pessoas consagradas que
professam voto de pobreza, mas também de muitas famílias e tantos cidadãos
responsáveis que acreditam firmemente que a relação fraterna com o próximo
constitua o bem mais precioso.
6.
As graves crises financeiras e econômicas dos nossos dias – que têm a sua
origem no progressivo afastamento do homem de Deus e do próximo, com a ambição
desmedida de bens materiais, por um lado, e o empobrecimento das relações
interpessoais e comunitárias, por outro – impeliram muitas pessoas a buscar o
bem-estar, a felicidade e a segurança no consumo e no lucro fora de toda a
lógica duma economia saudável. Já, em 1979, o Papa João
Paulo II alertava para a existência de «um real e perceptível perigo de
que, enquanto progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas,
ele perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras, submeta
a elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objeto de multiforme
manipulação, se bem que muitas vezes não diretamente perceptível; manipulação
através de toda a organização da vida comunitária, mediante o sistema de
produção e por meio de pressões dos meios de comunicação social».[14]
As sucessivas crises econômicas devem levar a
repensar adequadamente os modelos de desenvolvimento econmico e a mudar os
estilos de vida. A crise ACtual, com pesadas consequências na vida das pessoas,
pode ser também uma ocasião propícia para recuperar as virtudes da prudência,
temperança, justiça e fortaleza. Elas podem ajudar-nos a superar os momentos
difíceis e a redescobrir os laços fraternos que nos unem uns aos outros, com a
confiança profunda de que o homem tem necessidade e é capaz de algo mais do que
a maximização do próprio lucro individual. As referidas virtudes são
necessárias sobretudo para construir e manter uma sociedade à medida da
dignidade humana.
7.
Ao longo do ano que termina, muitos irmãos e irmãs nossos continuaram a viver a
experiência dilacerante da guerra, que constitui uma grave e profunda ferida
infligida à fraternidade. Há muitos conflitos que se consumam na indiferença
geral. A todos aqueles que vivem em terras onde as armas impõem terror e
destruição, asseguro a minha solidariedade pessoal e a de toda a Igreja. Esta
última tem por missão levar o amor de Cristo também às vítimas indefesas das
guerras esquecidas, através da oração pela paz, do serviço aos feridos, aos
famintos, aos refugiados, aos deslocados e a quantos vivem no terror. De igual
modo a Igreja levanta a sua voz para fazer chegar aos responsáveis o grito de
dor desta humanidade atribulada e fazer cessar, juntamente com as hostilidades,
todo o abuso e violação dos direitos fundamentais do homem.[15]
Por este motivo, desejo dirigir um forte
apelo a quantos semeiam violência e morte, com as armas: naquele que hoje
considerais apenas um inimigo a abater, redescobri o vosso irmão e detende a
vossa mão! Renunciai à via das armas e ide ao encontro do outro com o diálogo,
o perdão e a reconciliação para reconstruir a justiça, a confiança e esperança
ao vosso redor! «Nesta óptica, torna-se claro que, na vida dos povos, os
conflitos armados constituem sempre a deliberada negação de qualquer concórdia
internacional possível, originando divisões profundas e dilacerantes feridas
que necessitam de muitos anos para se curarem. As guerras constituem a rejeição
prática de se comprometer para alcançar aquelas grandes metas econômicas e
sociais que a comunidade internacional estabeleceu».[16]
Mas, enquanto houver em circulação uma
quantidade tão grande como a atual de armamentos, poder-se-á sempre encontrar
novos pretextos para iniciar as hostilidades. Por isso, faço meu o apelo
lançado pelos meus Predecessores a favor da não-proliferação das armas e do
desarmamento por parte de todos, a começar pelo desarmamento nuclear e químico.
Não podemos, porém, deixar de constatar que os acordos internacionais e as leis
nacionais, embora sendo necessários e altamente desejáveis, por si sós não
bastam para preservar a humanidade do risco de conflitos armados. É precisa uma
conversão do coração que permita a cada um reconhecer no outro um irmão do qual
cuidar e com o qual trabalhar para, juntos, construírem uma vida em plenitude
para todos. Este é o espírito que anima muitas das iniciativas da sociedade
civil, incluindo as organizações religiosas, a favor da paz. Espero que o
compromisso diário de todos continue a dar fruto e que se possa chegar também à
efetiva aplicação, no direito internacional, do direito à paz como direito
humano fundamental, pressuposto necessário para o exercício de todos os outros
direitos.
8.
O horizonte da fraternidade apela ao crescimento em plenitude de todo o homem e
mulher. As justas ambições duma pessoa, sobretudo se jovem, não devem ser
frustradas nem lesadas; não se lhe deve roubar a esperança de podê-las
realizar. A ambição, porém, não deve ser confundida com prevaricação; pelo contrário,
é necessário competir na mútua estima (cf. Rm 12, 10). Mesmo nas
disputas, que constituem um aspecto inevitável da vida, é preciso recordar-se
sempre de que somos irmãos; por isso, é necessário educar e educar-se para não
considerar o próximo como um inimigo nem um adversário a eliminar.
A fraternidade gera paz social, porque cria
um equilíbrio entre liberdade e justiça, entre responsabilidade pessoal e
solidariedade, entre bem dos indivíduos e bem comum. Uma comunidade política
deve, portanto, agir de forma transparente e responsável para favorecer tudo
isto. Os cidadãos devem sentir-se representados pelos poderes públicos, no
respeito da sua liberdade. Em vez disso, muitas vezes, entre cidadão e
instituições, interpõem-se interesses partidários que deformam essa relação,
favorecendo a criação dum clima perene de conflito.
Um autêntico espírito de fraternidade vence o
egoísmo individual, que contrasta a possibilidade das pessoas viverem em
liberdade e harmonia entre si. Tal egoísmo desenvolve-se, socialmente, quer nas
muitas formas de corrupção que hoje se difunde de maneira capilar, quer na
formação de organizações criminosas – desde os pequenos grupos até àqueles
organizados à escala global – que, minando profundamente a legalidade e a justiça,
ferem no coração a dignidade da pessoa. Estas organizações ofendem gravemente a
Deus, prejudicam os irmãos e lesam a criação, revestindo-se duma gravidade
ainda maior se têm conotações religiosas.
Penso no drama dilacerante da droga com a
qual se lucra desafiando leis morais e civis, na devastação dos recursos
naturais e na poluição em curso, na tragédia da exploração do trabalho; penso
nos tráficos ilícitos de dinheiro como também na especulação financeira que,
muitas vezes, assume caracteres predadores e nocivos para inteiros sistemas
econômicos e sociais, lançando na pobreza milhões de homens e mulheres; penso
na prostituição que diariamente ceifa vítimas inocentes, sobretudo entre os
mais jovens, roubando-lhes o futuro; penso no abominável o tráfico de seres
humanos, nos crimes e abusos contra menores, na escravidão que ainda espalha o
seu horror em muitas partes do mundo, na tragédia frequentemente ignorada dos
emigrantes sobre quem se especula indignamente na ilegalidade. A este respeito
escreveu João XXIII:
«Uma convivência baseada unicamente em relações de força nada tem de humano:
nela vêem as pessoas coercitadas a própria liberdade, quando, pelo contrário,
deveriam ser postas em condição tal que se sentissem estimuladas a procurar o
próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento».[17]
Mas o homem pode converter-se, e não se deve jamais desesperar da possibilidade
de mudar de vida. Gostaria que isto fosse uma mensagem de confiança para todos,
mesmo para aqueles que cometeram crimes hediondos, porque Deus não quer a morte
do pecador, mas que se converta e viva (cf. Ez 18, 23).
No contexto alargado da sociabilidade humana,
considerando o delito e a pena, penso também nas condições desumanas de muitos
estabelecimentos prisionais, onde frequentemente o preso acaba reduzido a um
estado sub-humano, violado na sua dignidade de homem e sufocado também em toda
a vontade e expressão de resgate. A Igreja faz muito em todas estas áreas, a
maior parte das vezes sem rumor. Exorto e encorajo a fazer ainda mais, na esperança
de que tais ações desencadeadas por tantos homens e mulheres corajosos possam
cada vez mais ser sustentadas, leal e honestamente, também pelos poderes civis.
9.
A família humana recebeu, do Criador, um dom em comum: a natureza. A visão
cristã da criação apresenta um juízo positivo sobre a licitude das intervenções
na natureza para dela tirar benefício, contanto que se atue responsavelmente,
isto é, reconhecendo aquela «gramática» que está inscrita nela e utilizando,
com sabedoria, os recursos para proveito de todos, respeitando a beleza, a
finalidade e a utilidade dos diferentes seres vivos e a sua função no
ecossistema. Em suma, a natureza está à nossa disposição, mas somos chamados a
administrá-la responsavelmente. Em vez disso, muitas vezes deixamo-nos guiar
pela ganância, pela soberba de dominar, possuir, manipular, desfrutar; não
guardamos a natureza, não a respeitamos, nem a consideramos como um dom
gratuito de que devemos cuidar e colocar ao serviço dos irmãos, incluindo as
gerações futuras.
De modo particular o sector produtivo
primário, o sector agrícola, tem a vocação vital de cultivar e guardar os
recursos naturais para alimentar a humanidade. A propósito, a persistente
vergonha da fome no mundo leva-me a partilhar convosco esta pergunta: De
que modo usamos os recursos da terra? As sociedades atuais devem refletir sobre
a hierarquia das prioridades no destino da produção. De fato, é um dever
impelente que se utilizem de tal modo os recursos da terra, que todos se vejam
livres da fome. As iniciativas e as soluções possíveis são muitas, e não se
limitam ao aumento da produção. É mais que sabido que a produção atual é
suficiente, e todavia há milhões de pessoas que sofrem e morrem de fome, o que
constitui um verdadeiro escândalo. Por isso, é necessário encontrar o modo para
que todos possam beneficiar dos frutos da terra, não só para evitar que se
alargue o fosso entre aqueles que têm mais e os que devem contentar-se com as
migalhas, mas também e sobretudo por uma exigência de justiça e equidade e de
respeito por cada ser humano. Neste sentido, gostaria de lembrar a todos o
necessário destino universal dos bens, que é um dos princípios fulcrais da
doutrina social da Igreja. O respeito deste princípio é a condição essencial
para permitir um acesso real e equitativo aos bens essenciais e primários de
que todo o homem precisa e tem direito.
10.
Há necessidade que a fraternidade seja descoberta, amada, experimentada,
anunciada e testemunhada; mas só o amor dado por Deus é que nos permite acolher
e viver plenamente a fraternidade.
O necessário realismo da política e da
economia não pode reduzir-se a um tecnicismo sem ideal, que ignora a dimensão
transcendente do homem. Quando falta esta abertura a Deus, toda a atividade
humana se torna mais pobre, e as pessoas são reduzidas a objeto passível de
exploração. Somente se a política e a economia aceitarem mover-se no amplo
espaço assegurado por esta abertura Àquele que ama todo o homem e mulher, é que
conseguirão estruturar-se com base num verdadeiro espírito de caridade fraterna
e poderão ser instrumento eficaz de desenvolvimento humano integral e de paz.
Nós, cristãos, acreditamos que, na Igreja,
somos membros uns dos outros e todos mutuamente necessários, porque a cada um
de nós foi dada uma graça, segundo a medida do dom de Cristo, para utilidade
comum (cf. Ef 4, 7.25; 1 Cor 12, 7). Cristo veio ao mundo
para nos trazer a graça divina, isto é, a possibilidade de participar na sua
vida. Isto implica tecer um relacionamento fraterno, caracterizado pela reciprocidade,
o perdão, o dom total de si mesmo, segundo a grandeza e a profundidade do amor
de Deus, oferecido à humanidade por Aquele que, crucificado e ressuscitado,
atrai todos a Si: «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros;
que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos
conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros»
(Jo 13, 34-35). Esta é a boa nova que requer, de cada um, um passo mais,
um exercício perene de empatia, de escuta do sofrimento e da esperança do
outro, mesmo do que está mais distante de mim, encaminhando-se pela estrada
exigente daquele amor que sabe doar-se e gastar-se gratuitamente pelo bem de
cada irmão e irmã.
Cristo abraça todo o ser humano e deseja que
ninguém se perca. «Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3, 17). Fá-lo sem oprimir,
sem forçar ninguém a abrir-Lhe as portas do coração e da mente. «O que for
maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve –
diz Jesus Cristo –. Eu estou no meio de vós como aquele que serve» (Lc 22,
26-27). Deste modo, cada atividade deve ser caracterizada por uma atitude de
serviço às pessoas, incluindo as mais distantes e desconhecidas. O serviço é a
alma da fraternidade que edifica a paz.
Que Maria, a Mãe de Jesus, nos ajude a
compreender e a viver todos os dias a fraternidade que jorra do coração do seu
Filho, para levar a paz a todo o homem que vive nesta nossa amada terra.
Vaticano,
8 de Dezembro de 2013.
FRANCISCUS
[1]Cf. Carta enc. Caritas
in veritate (29 de Junho de 2009), 19: AAS 101 (2009),
654-655.
[2]Cf. Francisco, Carta
enc. Lumen
fidei (29 de Junho de 2013), 54: AAS 105 (2013), 591-592.
[3]Cf. Paulo VI, Carta
enc. Populorum
progressio (26 de Março de 1967), 87: AAS 59 (1967), 299.
[4]Cf. João Paulo II,
Carta enc. Sollicitudo
rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 39: AAS 80 (1988),
566-568.
[5]Carta enc. Populorum
progressio (26 de Março de 1967), 43: AAS 59 (1967),
278-279.
[7]Carta enc. Sollicitudo
rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 38: AAS 80 (1988),
566.
[11]Cf. Carta enc. Caritas
in veritate (29 de Junho de 2009), 19: AAS 101 (2009),
654-655.
[12] Summa
theologiae, II-II, q. 66, a. 2.
[13] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium
et spes, 69; cf. Leão XIII, Carta enc. Rerum
novarum (15 de Maio de 1891), 19: ASS 23 (1890-1891), 651;
João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo
rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988),
573-574; Pont. Conselho «Justiça e Paz», Compêndio
da Doutrina Social da Igreja, 178.
[14] Carta
enc. Redemptor
hominis (4 de Março de 1979), 16: AAS 61 (1979), 290.
[15]Cf. Pont. Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio
da Doutrina Social da Igreja, 159.
[16] Francisco, Carta
ao Presidente Vladimir Putin (4 de Setembro de
2013): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 8/IX/2013), 5.
[17] Carta
enc. Pacem
in terris (11 de Abril de 1963), 17: AAS 55 (1963), 265.
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