Em
primeiro lugar, mencionemos a ideia básica da teologia da libertação, que, no
fundo, teve eco em quase todos os continentes. Antes de mais nada, é preciso
ressalvar que pode ser interpretada num sentido positivo. A ideia fundamental é
que o cristianismo também tem de ter efeito na existência terrena do homem: tem
de lhe dar a liberdade de consciência, mas também tem de procurar fazer valer
os direitos sociais do homem. Mas quando essa ideia é aproveitada num sentido
unilateral, procura, em geral, ver no cristianismo o instrumento de uma
transformação política do mundo. A partir desse ponto, tomou forma a ideia de
que todas as religiões seriam apenas instrumentos para a defesa da liberdade,
da paz e da preservação da Criação; teriam, pois, de justificar-se através de
um sucesso político e de um objetivo político. Essa temática varia segundo as
situações políticas, mas atravessa os continentes.
Hoje, enraizou-se fortemente na Ásia, mas
também na África. Penetrou até no mundo islâmico, onde também há tentativas de
interpretar o Corão no sentido da teologia da libertação; são marginais, mas
nos movimentos terroristas islâmicos a ideia de que o Islã deveria realmente
ser um movimento de libertação - por exemplo, contra Israel - teve um papel
fundamental. Entretanto, a ideia de libertação - se pudermos chamar liberdade
ao denominador fundamental da espiritualidade moderna e do nosso século -
também se fundiu fortemente com a ideologia feminista. A mulher é considerada o
ser oprimido por excelência: por essa razão, a libertação da mulher seria o
núcleo de toda a atividade libertadora. Aqui ultrapassou-se, por assim dizer, a
teologia da libertação política mediante outra antropológica. Não se pensa
apenas na libertação dos vínculos próprios do papel da mulher, mas na
libertação da condição biológica do ser humano.
Distingue-se então o fenômeno biológico da
sexualidade das suas expressões históricas, às quais se chama “gênero”, mas a
revolução que se quer provocar contra toda a forma histórica da sexualidade
conduz a uma revolução que também é contra as condições biológicas: já não pode
haver dados naturais; o homem deve poder moldar-se arbitrariamente, deve ser
livre de todos os condicionalismos do seu ser; ele próprio se tornaria o que
quer, e só desse modo seria realmente “livre” e estaria libertado. Por trás
disso encontramos uma revolta do homem contra os limites que o seu ser
biológico envolve. Trata-se, em última análise, de uma revolta contra a própria
condição de criatura. O homem deveria ser o criador de si mesmo - uma nova
edição, moderna, da velha tentativa de ser Deus, de ser como Deus.
O terceiro fenômeno que se observa em todo o
mundo - sobretudo num mundo cada vez mais uniformizado - é a busca de uma
identidade cultural própria, expressa no termo “inculturação”. Na América
Latina, a redescoberta das culturas perdidas é agora, depois de a onda marxista
ter diminuído, uma nova corrente forte. A “teologia índia” quer
voltar a despertar a cultura e a religião pré-colombianas e libertar-se, por
assim dizer, da penetração excessiva de elementos europeus que lhe foi imposta.
As ligações diretas com o feminismo são interessantes. Saliente-se o culto da “Mãe-terra”
e, em geral, do elemento feminino em Deus, o que acentua as tendências do
feminismo americano-europeu, que já não quer apenas fazer afirmações
antropológicas, mas reformar o conceito de Deus. Ter-se-ia projetado em Deus a
estrutura patriarcal e, assim, fixado a opressão da mulher a partir do conceito
de Deus. O elemento cósmico (Mãe-terra, etc.) dessa renovação das antigas
religiões conflui depois com as tendências da New Age, que visa uma
fusão de todas as religiões e uma nova unidade do homem e do cosmos.
(Cardeal
Joseph Ratzinger in ‘O sal da terra’ – págs. 107-109)
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