Desde
a Constituição do Império de 1824, os textos magnos pátrios consagram o
princípio da liberdade religiosa, o que se dá amplamente a partir da Carta
Republicana de 1891. O Estado Laico, longe de ser um Estado Ateu — que nega a
existência de Deus — protege a liberdade de consciência e de crença de seus
cidadãos, permitindo a coexistência de vários credos. Aliás, é princípio
fundamental do cristianismo e muito precioso aos católicos, que compreendem a
parcela maior dos brasileiros, o profundo respeito à liberdade religiosa de
cada um, como bem se afirma na declaração "Dignitatis Humanae",
do Concílio Vaticano II.
As
Constituições fazem expressa menção, em seus preâmbulos, à confiança depositada
em Deus (1934), colocando-se sob sua proteção (1946), ou afirmando o amparo
divino, como pouco humildemente se fez em 1988. Esta percepção da importância
de Deus como fundamento de uma sociedade fraterna radica na indissociável
conexão entre a história, a cultura e o próprio Criador, o que é imprescindível
para a elaboração de políticas públicas que não colidam com a liberdade
religiosa e nem desrespeitem a profunda religiosidade da nação brasileira.
Daí
a enorme distância entre o pluralismo religioso do Estado Laico e um Estado Ateu
ou Pagão que nega a existência de Deus ou prega a divinização do ocupante do
poder. Nero lançou no ano 64 uma feroz perseguição aos cristãos, que se seguiu
ao longo do século II para a preservação do culto pagão aos imperadores.
Hitler, com políticas de extermínio do povo judeu — e também de cristãos,
ciganos e deficientes físicos — sustentou um Estado Ateu em que o Füher era o
senhor supremo da vida e da morte.
Por
outro lado, Bento XVI, o Papa do Amor e da Paz da encíclica "Deus
Caritas Est", ao abrir a V CELAM, em Aparecida, considerando "a
realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da
América Latina e do mundo", afirmou:
"O
que é esta «realidade»? O que é o real? São «realidade» só os bens materiais,
os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande
erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como
demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como inclusive dos
capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade
fundante, e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte
falsifica o conceito de «realidade» e, em conseqüência, só pode terminar em
caminhos equivocados e com receitas destrutivas. A primeira afirmação
fundamental é, pois, a seguinte: Só quem reconhece Deus, conhece a realidade e
pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade dessa tese
é evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre
parênteses."
Para
se evitarem "caminhos equivocados e com receitas destrutivas", é
indispensável que o Estado Laico também dialogue com a ciência, que, quando
busca a verdade e é conduzida com vistas à preservação da dignidade humana em
plenitude, não contradiz verdades de fé. E nos temas de proteção à vida, a
ciência moderna comprova que ela se dá a partir da concepção, o que já impõe
substancial amparo jurídico do Estado. A proteção constitucional e legal à vida
— única e irrepetível — a partir de seu início, confirma, pois, aquilo que
algumas das maiores religiões já afirmam desde tempos imemoriais.
Assim,
quando se defronta com temas como aborto, pesquisas destrutivas com
células-tronco embrionárias, comercialização de embriões humanos por clínicas
de fertilização artificial, não se pode calar a manifestação de cristãos,
judeus, muçulmanos e até mesmo de ateus, como expressão da rica realidade dos
que compõem a sociedade brasileira. Quando se sustenta que o Estado deve ser
surdo à religiosidade de seus cidadãos, na verdade se reveste este mesmo Estado
de características pagãs e ateístas que não são e nunca foram albergadas pelas
Constituições brasileiras. A democracia nasce e se desenvolve a partir da
pluralidade de idéias e opiniões, e não da ausência delas. É direito e garantia
fundamental a livre expressão do pensamento, inclusive para a adequada formação
das políticas públicas. Pretender calar os vários segmentos religiosos do país
não é apenas antidemocrático e inconstitucional, mas traduz comportamento
revestido de profunda intolerância e prejudica gravemente a saudável
convivência harmônica do todo social brasileiro.
Dr. Ives Gandra da Silva Martins
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