A
Igreja, comunhão dos sacramentos e sociedade dos santos.
O cisma donatista partiu de uma convicção:
não pode transmitir a graça um ministro que não a possui; os sacramentos
administrados desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este
argumento, que no início foi aplicado à ordenação do bispo Ceciliano, acabou
estendido rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao batismo. Com
isto, os donatistas justificavam a sua separação dos católicos e a prática de
rebatizar quem vinha das suas fileiras.
Em resposta, Agostinho desenvolve um
princípio que se tornará uma conquista perene da teologia e que lança as bases
de um futuro tratado de sacramentis: a distinção entre potestas e ministerium,
ou seja, entre a causa da graça e o seu ministro. A graça conferida pelos
sacramentos é obra exclusiva de Deus e de Cristo; o ministro não passa de um
instrumento: "Pedro batiza, é Cristo quem batiza; João batiza, é Cristo
quem batiza; Judas batiza, é Cristo quem batiza". A validade e eficácia
dos sacramentos não é impedida pelo ministro indigno: uma verdade da qual, bem sabemos,
o povo cristão precisa se lembrar também hoje...
Neutralizada, assim, a principal arma do
adversário, Agostinho pode elaborar a sua grandiosa visão da Igreja mediante
algumas distinções fundamentais. A primeira é entre a Igreja presente ou
terrestre e a Igreja celestial ou futura. Só esta segunda será uma Igreja de
todos santos e apenas santos; a Igreja do tempo presente será sempre o campo em
que se misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe peixes bons e peixes
ruins, ou seja, santos e pecadores.
Dentro da Igreja em seu estágio terreno,
Agostinho opera outra distinção: entre a comunhão dos sacramentos (communio
sacramentorum) e a sociedade dos santos (societas sanctorum). A primeira une
visivelmente entre si todos aqueles que participam dos mesmos sinais externos:
os sacramentos, a Escritura, a autoridade; a segunda une entre si todos e
apenas aqueles que, além dos sinais, também têm em comum a realidade escondida
nos sinais (res sacramentorum), que é o Espírito Santo, a graça, a caridade.
Dado que na terra sempre será impossível
saber com certeza quem possui o Espírito Santo e a graça, e, mais ainda, se
eles perseverarão nesse estado até o fim, Agostinho acaba identificando a
verdadeira e definitiva comunidade dos santos com a Igreja celeste dos
predestinados. "Quantas ovelhas que hoje estão dentro estarão fora, e
quantos lobos que hoje estão fora estarão dentro!" (5).
A novidade, neste ponto, mesmo no tocante a
Cipriano, é que, enquanto este fazia consistir a unidade da Igreja em algo
externo e visível, na concórdia de todos os bispos entre si, Agostinho a faz
consistir em algo interno: o Espírito Santo. A unidade da Igreja é operada,
assim, pelo mesmo que opera a unidade na Trindade: “O Pai e o Filho quiseram
que estivéssemos unidos entre nós e com eles por meio do mesmo vínculo que os
une, o amor, que é o Espírito Santo” (6). Ele executa na Igreja a mesma função
que exerce a alma em nosso corpo natural: ser o seu princípio vital e
unificador. "O que a alma é para o corpo humano, o Espírito Santo é para o
Corpo de Cristo, que é a Igreja" (7).
A plena pertença à Igreja exige as duas
coisas juntas, a comunhão visível dos sinais sacramentais e a comunhão
invisível da graça. Esta, no entanto, admite graus, e por isso não quer dizer
que se deva estar necessariamente dentro ou fora. Pode-se estar em parte dentro
e em parte fora. Há uma pertença exterior, ou sinais sacramentais, em que se
situam os cismáticos donatistas e os próprios maus católicos, e uma comunhão
plena e total. A primeira consiste em ter o sinal externo da graça
(sacramentum), sem receber, porém, a realidade interior produzida por eles (res
sacramenti), ou em recebê-la, mas para a própria condenação, não para a própria
salvação, como no caso do batismo administrado pelos cismáticos ou da
Eucaristia recebida indignamente pelos católicos.
A
Igreja Corpo de Cristo animado pelo Espírito Santo.
Nos escritos exegéticos e nos discursos ao
povo, encontramos esses mesmos princípios básicos da eclesiologia; mas menos
pressionado pela controvérsia e falando, por assim dizer, em família, Agostinho
pode insistir mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a
ele. Neles, a Igreja é apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos,
como o corpo de Cristo (ainda falta o adjetivo “místico”, que será adicionado
mais tarde), animado pelo Espírito Santo, tão afim ao corpo eucarístico a ponto
de, às vezes, igualar-se quase totalmente a ele. Ouçamos o que ouviram os seus
fiéis, numa festa de Pentecostes, sobre esta questão: "Se queres entender
o corpo de Cristo, ouve o Apóstolo que diz aos fiéis: Vós sois o corpo de
Cristo e os seus membros (1 Co 12,27). Se vós sois o corpo e os membros de
Cristo, na mesa do Senhor está o vosso mistério: recebei o vosso mistério. Ao
que sois, respondeis ‘amém’ e, ao respondê-lo, o confirmais. É dito a vós: ‘o
corpo de Cristo’, e respondeis: ‘amém’. Sê membro do corpo de Cristo, para o
teu amém ser verdadeiro... Sede o que vedes e recebei o que sois" (8).
O nexo entre os dois corpos de Cristo se
fundamenta, para Agostinho, na singular correspondência simbólica entre o devir
de um e o formar-se da outra. O pão da Eucaristia é obtido da massa de muitos
grãos de trigo e o vinho de uma multidão de bagos de uva: assim a Igreja é
formada por muitas pessoas, reunidas e amalgamadas pela caridade que é o
Espírito Santo (9). Como o trigo espalhado pelas colinas foi primeiro colhido,
depois moído, misturado com água e assado no forno, assim os fiéis esparsos
pelo mundo foram reunidos pela palavra de Deus, moídos pelas penitências e
exorcismos que precedem o batismo, imersos na água do batismo e passados pelo
fogo do Espírito. Mesmo em relação à Igreja, deve-se dizer que o sacramento
"significando causat": significando a união de várias pessoas em uma,
a Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido, podemos dizer que "a
Eucaristia faz a Igreja".
3.
Atualidade da eclesiologia de Agostinho
Vamos agora ver como as ideias de Agostinho
sobre a Igreja podem ajudar a iluminar os problemas que ela enfrenta em nosso
tempo. Quero me concentrar em especial na importância da eclesiologia de
Agostinho para o diálogo ecumênico. Uma circunstância torna esta escolha
particularmente oportuna. O mundo cristão se prepara para celebrar o quinto
centenário da Reforma Protestante. Já começaram a circular declarações e
documentos conjuntos em vista do evento (10). É vital, para toda a Igreja, não
estragarmos esta ocasião permanecendo prisioneiros do passado, tentando apurar,
talvez com maior objetividade e serenidade, as razões e as culpas de um e de
outro, mas sim darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um rio ou
de um canal, que permite que os navios continuem a sua navegação num patamar
mais elevado.
A situação do mundo, da Igreja e da teologia
mudou desde aquela época. Trata-se de recomeçar a partir da pessoa de Jesus, de
ajudar humildemente os nossos contemporâneos a descobrir a pessoa de Cristo.
Devemos nos remeter ao tempo dos apóstolos. Eles tinham diante de si um mundo
pré-cristão; nós temos diante de nós um mundo em grande parte pós-cristão.
Quando Paulo quis resumir em uma frase a essência da mensagem cristã, ele não
disse "Anunciamos esta ou aquela doutrina", mas "Nós proclamamos
Cristo, e Cristo crucificado" (1 Cor 1, 23). E ainda: "Nós
proclamamos Jesus Cristo, o Senhor" (2 Cor 4,5).
Isto não significa ignorar o grande
enriquecimento teológico e espiritual produzido pela Reforma, nem querer
retornar ao ponto de antes; significa, em vez disso, deixar que toda a
cristandade se beneficie das suas conquistas, uma vez libertadas de certas
forçações devidas ao clima polêmico do momento e às posteriores controvérsias.
A justificação gratuita pela fé, por exemplo, deveria ser anunciada hoje, e com
mais força do que nunca, mas não em oposição às boas obras, o que é uma questão
superada, e sim em oposição à pretensão do homem moderno de se salvar sozinho,
sem necessidade nem de Deus nem de Cristo. Se vivesse hoje, sou convencido que
isto seria o modo com o qual Lutero predicasse a justificação por fé.
Vamos ver como a teologia de Agostinho pode
nos ajudar neste esforço para superar as barreiras seculares. O caminho a
percorrer hoje, em certo sentido, segue na direção oposta à que foi tomada por
ele contra os donatistas. Na época, era preciso ir da comunhão dos sacramentos
à comunhão na graça do Espírito Santo e na caridade, mas hoje temos que ir da
comunhão espiritual da caridade à plena comunhão, inclusive nos sacramentos,
entre os quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A distinção entre os dois níveis de
realização da verdadeira Igreja, o externo, dos sinais, e o interno, da graça,
permite que Agostinho formule um princípio que seria impensável antes dele:
"Pode haver algo na Igreja católica que não seja católico, e fora da
Igreja católica algo católico" (11). Os dois aspectos da Igreja, o visível
e institucional e o invisível e espiritual, não podem ser separados. Isso é
verdade e foi reiterado por Pio XII na Mystici corporis e pelo Concílio
Vaticano II na Lumen Gentium, mas, devido às separações históricas e ao pecado
humano, até que se realize a sua correspondência plena, não podemos dar mais
importância à comunidade institucional do que à espiritual.
Para mim, isto levanta uma séria indagação.
Posso eu, como católico, me sentir mais em comunhão com a multidão dos que,
tendo sido batizados na minha própria Igreja, se desinteressam completamente de
Cristo e da Igreja, ou se interessam por ela apenas para falar mal, do que me
sinto em comunhão com as fileiras daqueles que, apesar de pertencer a outras
confissões cristãs, acreditam nas mesmas verdades fundamentais em que eu creio,
amam Jesus Cristo até dar a vida por ele, difundem o Evangelho, se esforçam
para aliviar a pobreza no mundo e possuem os mesmos dons do Espírito Santo que
nós? As perseguições, tão frequentes hoje em certas partes do mundo, não fazem
distinção: os perseguidores não queimam igrejas nem matam pessoas porque elas
são católicas ou protestantes, mas porque são cristãs. Para eles, nós já somos
"uma coisa só"!
Esta,
obviamente, é uma pergunta que deveria ser feita também pelos cristãos das
outras igrejas a propósito dos católicos, e, graças a Deus, é precisamente isto
o que está acontecendo de uma forma oculta, porém maior do que as notícias nos
deixam vislumbrar. Um dia, tenho certeza, ficaremos admirados, ou outros
ficarão, por não termos notado antes o que o Espírito Santo estava realizando
entre os cristãos do nosso tempo, à margem da oficialidade. Fora da Igreja
católica há muitíssimos cristãos que olham para ela com olhos novos e começam a
reconhecer nela as suas próprias raízes.
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