A
intuição mais nova e fecunda de Agostinho sobre a Igreja, como vimos, foi a de
identificar o princípio essencial da sua unidade no Espírito, mais do que na
comunhão horizontal dos bispos uns com os outros e dos bispos com o papa de
Roma. Como a unidade do corpo humano é dada pela alma que vivifica e move todos
os seus membros, assim é a unidade do corpo de Cristo. Esta unidade é um fato
místico, mais do que uma realidade que se expressa social e visivelmente em
perspectiva externa. É o reflexo da unidade perfeita que existe entre o Pai e o
Filho por obra do Espírito. Foi Jesus quem fixou de uma vez para sempre este
fundamento místico da unidade quando disse: "Que todos sejam um, como nós
somos um" (Jo 17, 22). A unidade essencial na doutrina e na disciplina
será o fruto desta unidade mística e espiritual, nunca a sua causa.
Os
passos mais concretos para a unidade não são dados, portanto, em torno de uma
mesa ou nas declarações conjuntas (embora tudo isto seja importante); são dados
quando os crentes de diferentes confissões proclamam juntos, em acordo
fraterno, o Senhor Jesus, compartilhando cada um o próprio carisma e
reconhecendo-se irmãos em Cristo.
4.
Membros do corpo de Cristo, movidos pelo Espírito!
Em seus discursos ao povo, Agostinho nunca
expõe as suas ideias sobre a Igreja sem apresentar imediatamente as
consequências práticas para a vida cotidiana dos fiéis. E é isto o que nós
também queremos fazer antes de concluir a nossa meditação, como se nos
colocássemos entre as fileiras dos seus ouvintes de então.
A imagem da Igreja como Corpo de Cristo não é
uma novidade de Agostinho. O que é novo nele são as conclusões práticas para a
vida dos crentes. Uma delas é que não temos mais razão para nos olharmos com
inveja e com ciúme. O que eu não tenho, mas os outros têm, também é meu.
Ouvimos o apóstolo elencar todos aqueles maravilhosos carismas: apostolado, profecia,
curas... e talvez nos entristeçamos pensando que não temos nenhum deles. Mas,
cuidado, alerta Agostinho: "Se tu amas, o que tens não é pouco. Se de fato
amas a unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído por ti!
Expulsa a inveja e será teu o que é meu, e, se eu expulsar a inveja, será meu o
que tu possuis".
Somente o olho, no corpo, tem a capacidade de
ver. Mas o olho, por acaso, enxerga apenas para si? Não é todo o corpo que se
beneficia da sua capacidade de ver? Só a mão age, mas ela age, acaso, apenas
para si mesma? Se uma pedra está prestes a atingir o olho, a mão por acaso
permanece imóvel, dizendo que o golpe, afinal, não é contra ela? O mesmo
acontece no corpo de Cristo: o que cada membro é e faz, Ele é e faz para todos!
Eis por que a caridade é o "caminho mais
excelente" (1 Cor 12 , 31): ela me faz amar a igreja, ou a comunidade em
que vivo, e, na unidade, todos os carismas, e não apenas alguns, são meus. E há
mais: se amas a unidade mais do que eu a amo, o carisma que eu possuo é mais
teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma de evangelizar; eu posso me
comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno "um címbalo que
retine" (1 Cor 13,01); o meu carisma "de nada me aproveita", ao
passo que o ouvinte não deixa de se beneficiar, apesar do meu pecado. A
caridade multiplica realmente os dons; ela faz do carisma de um, o carisma de
todos.
“Fazes parte do corpo de Cristo? Amas a
unidade da Igreja?”, perguntava Agostinho aos seus fiéis. “Então, quando um
pagão te perguntar por que não falas todas as línguas, se está escrito que
aqueles que receberam o Espírito Santo falam todas as línguas, responde sem
hesitar: ‘É claro que falo todas as línguas! Eu pertenço ao corpo da Igreja,
que fala todas as línguas e em todas as línguas proclama as grandes obras de
Deus’” (13).
Quando formos capazes de aplicar esta verdade
não só às relações dentro da comunidade em que vivemos e à nossa Igreja, mas
também às relações entre uma Igreja cristã e a outra, naquele dia a unidade dos
cristãos será praticamente um fato consumado.
Acolhamos a exortação com que Agostinho fecha
muitos dos seus discursos sobre a Igreja: “Se quiserdes, pois, experimentar o
Espírito Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcançareis a eternidade.
Amém” (14).
(1)
Bernardo de Chartres, coment. João de Salisbury, Metalogicon, III, 4 (Corpus
Chr. Cont. Med., 98, p.116).
(2)
A este âmbito da influência de Agostinho é dedicado o livro de H. de Lubac,
Augustinisme et théologie moderne, Paris, Aubier 1965.
(3)
Cf. J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, London 1968 chap. XV.
(4)
Agostinho, Contra Epist. Parmeniani II,15,34; cf. todo o Sermo 266.
(5)
Agostinho, In Ioh. Evang. 45,12: “Quam multae oves foris, quam multi lupi
intus!”.
(6)
Agostinho, Discursos, 71, 12, 18 (PL 38,454).
(7)
Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
(8)
Agostinho, Sermo 272 (PL 38, 1247 em diante).
(9)
Ibidem.
(10)
Cf. documento conjunto católico-luterano “Do conflito à comunhão”,
http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/lutheran-fed-docs/rc_pc_chrstuni_doc_2013_dal-conflitto-alla-comunione_it.html
(em italiano).
(11)
Agostinho, De Baptismo, VII, 39, 77.
(12)
Agostinho, Tratados sobre João, 32,8.
(13)
Cf. Agostinho, Discursos, 269, 1.2 (PL 38, 1235 s.).
(14)
Agostinho, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
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