Podemos
falar de muitas cegueiras. Dos olhos, dos preconceitos, do coração.
Involuntárias e voluntárias. A cegueira de ficar preso ao passado e a de só ter
olhos para o futuro. Ver é um dom e um caminho, é um impacto sobre os
maravilhosos receptores a que chamamos olhos, e também a possibilidade de
interpretar o visível, quando não, até “ver o invisível”, esse essencial de que
falava Saint-Exupéry, apenas acessível pelo coração. Mas vemos com outros, e
dos muitos pontos de vista podemos ver melhor.
Nas sete cenas do capítulo 9 de São João,
Jesus e o cego que passa a ver, apenas se encontram na primeira e na última. As
outras são o desenrolar de provas e conflitos a que o ex-cego é submetido, num
espantoso caminho de fé. Jesus toma a iniciativa de curar com gestos que têm o
sabor da criação: lodo feito de terra e saliva, como o barro modelado e o
hálito com que Deus fez o primeiro homem. Um homem para a luz, também ela a
primeira obra da criação.
Para o cego, que só verá Jesus no final, a
identidade de Jesus vai-se aclarando com os interrogatórios: primeiro é “esse
homem que se chama Jesus”, depois “um profeta”, “se Ele não viesse de
Deus nada podia fazer”, até o reconhecer com “Senhor”. Por entre as
dificuldades sentimos crescer a coragem e a audácia deste homem. Já não é um
“coitadinho” (exclamação que certamente ouviu muitas vezes), mas alguém com voz
própria, capaz de atrapalhar a lógica escurecida e fechada dos fariseus e dos
judeus, interpelando com ironia, e denunciando a cegueira de quem tudo afirma
saber mas não está disposto a deixar-se interpelar por Cristo. É a religião que
tudo controla, tudo domina e tudo sabe, incapaz de se alegrar com os milagres
“fora do horário estabelecido” e com a surpresa de Deus não se limitar aos seus
conceitos. É tão fácil colar rótulos, de “pecador”, como a este homem, ou
tantos outros que prolongam a cegueira de quem os pronuncia, rejeitando pessoas
e o que podemos aprender com elas!
Quando o cego que passou a ver é expulso, sem
família e sem religião, sem herança nem abrigo (e talvez sem “emprego”, pois
dum cego sempre há quem se compadeça e deixe algumas moedas nas suas mãos),
Jesus vem ao seu encontro. Sempre nos confrontará esta predileção de Deus pelos
excluídos, pelos abandonados, pelos que não têm lugar nos nossos círculos
familiares e religiosos, mas sempre encontrarão lugar no coração de Deus. De
Jesus conheceria aquele homem, o toque das mãos e o timbre da voz. O rosto
nunca o tinha visto. E contudo já o seu coração estava próximo dele. O breve
diálogo conduz à fé, a verdadeira iluminação, a passagem à visão verdadeira que
só Jesus pode oferecer.
Afinal quem julgava ver é que era cego. E
cegos continuaremos se deixamos de procurar, se recusamos a luz que outros nos
oferecem, se excluímos e abandonamos, se não nos alegramos com os milagres
inesperados!
Pe.
Vítor, in “Voz da Verdade” 30.03.2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Você pode deixar seu comentário ou sua pergunta. O respeito e a reverência serão sempre bem vindas.