O
relato do Evangelho de hoje é destinado a ensinar que Jesus é o Filho de Deus e
que o projeto que Ele propõe vem de Deus; a passagem está construída sobre
elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são esses? O
monte situa-nos num contexto de revelação: é sempre num monte que Deus Se
revela; e, em especial, é no cimo de um monte que Ele faz uma aliança com o seu
Povo. A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o
resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29), depois de se encontrar
com Deus e de ter as tábuas da Lei. A nuvem, por sua vez, indica a presença de
Deus: era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu
Povo através do deserto (cf. Ex 40,35; Nm 9,18.22; 10,34).
Moisés e Elias representam a Lei e os
Profetas (que anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são
personagens que, de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do
Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal
3,22-23). O temor e a perturbação dos discípulos são a reacção lógica de
qualquer homem ou mulher diante da manifestação da grandeza, da omnipotência e
da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21). As tendas parecem aludir à “festa
das tendas”, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus
habitou em “tendas”, no deserto.
A
mensagem fundamental, unida a todos estes elementos, pretende dizer quem é
Jesus. Recorrendo a simbologias do Antigo Testamento, o autor deixa claro que
Jesus é o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele é,
também, esse Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela
Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Mais ainda: ele é um novo Moisés – isto
é, aquele através de quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de
quem Deus propõe aos homens uma nova aliança.
Esta apresentação tem como destinatários os
discípulos de Jesus (esse grupo desanimado e frustrado porque no horizonte
próximo do seu líder está a cruz e porque o mestre exige dos discípulos que
aceitem percorrer um caminho semelhante). Aponta para a ressurreição, aqui
anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas vestes
resplandecentes (que lembram as vestes resplandecentes dos anjos que anunciam a
ressurreição – cf. Mt 28,3) e pelas palavras finais de Jesus (“não conteis a
ninguém esta visão, até o Filho do Homem ressuscitar dos mortos” – Mt 17,9):
diz-lhes que a cruz não será a palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e,
consequentemente, dos discípulos que seguirem Jesus) está a ressurreição, a
vida plena, a vitória sobre a morte.
Pela transfiguração de Jesus, Deus demonstra
aos fiéis de todas as épocas e lugares que uma existência feita dom não é
fracassada – mesmo se termina na cruz. Para muitos dos nossos irmãos, a vida
plena não está no amor levado até às últimas consequências (até ao dom total da
vida), mas sim na preocupação egoísta com os seus interesses pessoais, com o
seu orgulho, com o seu pequeno mundo privado; não está no serviço simples e
humilde em favor dos irmãos (sobretudo dos mais débeis, dos mais marginalizados
e dos mais infelizes), mas no assegurar para si próprio uma dose generosa de
poder, de influência, de autoridade e de domínio, que dê a sensação de
pertencer à categoria dos vencedores; não está numa vida vivida como dom, com
humildade e simplicidade, mas numa vida feita um jogo complicado de conquista
de honras, de glórias e de êxitos. Na verdade, onde é que está a realização
plena do homem? Quem tem razão: Deus, ou os esquemas humanos que hoje dominam o
mundo e que nos impõem uma lógica diferente da lógica do Evangelho?
Por vezes somos tentados pelo desânimo,
porque não percebemos o alcance dos esquemas de Deus; ou então, parece que,
seguindo a lógica de Deus, seremos sempre perdedores e fracassados, que nunca
integraremos a elite dos senhores do mundo e que nunca chegaremos a conquistar
o reconhecimento daqueles que caminham ao nosso lado… A transfiguração de Jesus
grita-nos, do alto daquele monte: não desanimeis, pois a lógica de Deus não
conduz ao fracasso, mas à ressurreição, à vida definitiva, à felicidade sem
fim.
Os três discípulos, testemunhas da
transfiguração, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e enfrentar o
mundo e os problemas dos homens. Representam todos aqueles que vivem de olhos
postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir
para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga a
“regressar ao mundo” para testemunhar aos homens – mesmo contra a corrente –
que a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo,
nos seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o
aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. A religião não é um ópio que
nos adormece, mas um compromisso com Deus, que se faz compromisso de amor com o
mundo e com os homens.
Fonte:
adaptação do Portal dos Dehonianos
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