1.
Do Oriente ao Ocidente
Na meditação introdutória, da semana passada,
refletimos sobre o significado da Quaresma como um tempo para irmos com Jesus
até o deserto, em jejum de alimentos, palavras e imagens, para aprender a
superar as tentações e, sobretudo, crescer na intimidade com Deus.
Nas quatro pregações que restam, dando
continuidade à reflexão iniciada na Quaresma de 2012 com os Padres gregos,
frequentaremos agora a escola dos quatro grandes doutores da Igreja latina:
Agostinho, Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno; para ver o que cada um nos
diz, hoje, sobre a verdade da fé que mais particularmente defendeu:
respectivamente, a natureza da Igreja, a presença real de Cristo na Eucaristia,
o dogma cristológico de Calcedônia e a inteligência espiritual das Escrituras.
O objetivo é redescobrir, por trás desses
grandes Padres, a riqueza, a beleza e a felicidade de crer; passar, como diz
São Paulo, "de fé em fé" (Rm 1,17), de uma fé acreditada para uma fé
vivida. Teremos, assim, um aumento do "volume" de fé dentro da Igreja
para constituir depois a força maior do seu anúncio ao mundo.
O título do ciclo vem de um pensamento caro
aos teólogos medievais: “Nós”, dizia Bernardo de Chartres, “somos como anões
sentados em ombros de gigantes, de modo a vermos mais coisas e mais longe do
que eles, não pela agudeza do nosso olhar nem pela altura do nosso corpo, mas
porque somos carregados para o alto e elevados por eles a uma altura
gigantesca" (1). Este pensamento encontrou expressão artística em certas
estátuas e vitrais de catedrais góticas da Idade Média, em que são
representados personagens de estatura imponente, que carregam, sentados sobre
seus ombros, homens pequenos, quase anões. Os gigantes eram para eles, como são
para nós, os Padres da Igreja.
Depois das lições de Atanásio, Basílio de
Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, respectivamente sobre a
divindade de Cristo, sobre o Espírito Santo, sobre a Trindade e sobre o
conhecimento de Deus, podia-se ter a impressão de que restasse muito pouco a
ser feito pelos Padres latinos na edificação do dogma cristão. Um olhar
superficial para a história da teologia nos convence imediatamente do
contrário.
Motivados pela cultura a que pertenciam,
favorecidos pela sua forte têmpera especulativa e condicionados pelas heresias
que eram forçados a combater (arianismo, apolinarismo, nestorianismo,
monofisismo), os Padres gregos tinham se concentrado principalmente nos
aspectos ontológicos do dogma: a divindade de Cristo, as suas duas naturezas e
o modo da sua união, a unidade e a trindade de Deus. Os temas mais caros a
Paulo, a justificação, a relação entre lei e evangelho, a Igreja como corpo de
Cristo, foram deixados à margem da sua atenção ou tratados en passant. Aos
seus escopos respondia muito melhor João, com a sua ênfase na encarnação, do
que Paulo, que põe no centro de tudo o mistério pascal, isto é, o agir, mais do
que o ser de Cristo.
A índole dos latinos, mais inclinada,
excetuando-se Agostinho, a se ocupar de problemas específicos, jurídicos e
organizacionais, do que de questões especulativas, unida ao surgimento de novas
heresias, como o donatismo e o pelagianismo, estimulará uma reflexão nova e
original sobre os temas paulinos da graça, da Igreja, dos sacramentos e das
Escrituras. São os tempos sobre os quais queremos refletir nesta pregação
quaresmal.
2.
O que é a Igreja?
Comecemos
a nossa resenha pelo maior dos padres latinos, Agostinho. O doutor de Hipona
deixou a sua marca em quase todas as áreas da teologia, mas especialmente em
duas: a da graça e a da Igreja; a primeira, fruto da sua luta contra o pelagianismo;
a segunda, de sua luta contra o donatismo.
O interesse pela doutrina de Santo Agostinho
sobre a graça prevaleceu, do século XVI em diante, tanto no âmbito protestante
(ao qual estão ligados Lutero, com a doutrina da justificação, e Calvino, com a
da predestinação), quanto no campo católico, por causa das controvérsias
levantadas por Jansen e Baio (2). Já o interesse pelas suas doutrinas eclesiais
prevalece em nossos dias, porque o Concílio Vaticano II fez da Igreja o seu
tema central e porque o movimento ecumênico tem na ideia de Igreja a questão
crucial a ser resolvida. Procurando ajuda e inspiração nos Padres da Fé para o
hoje da fé, vamos nos ocupar desta segunda área de interesse de Santo
Agostinho, que é a Igreja.
A Igreja não era um assunto desconhecido para
os Padres gregos nem para os escritores latinos anteriores a Agostinho
(Cipriano, Hilário, Ambrósio), mas as suas afirmações se limitavam
principalmente a repetir e comentar afirmações e imagens das Escrituras. A
Igreja é o novo povo de Deus; a ela é prometida a indefectibilidade; ela é
"a coluna e a base da verdade"; o Espírito Santo é o seu mestre
supremo; a Igreja é "católica" porque se estende a todos os povos,
ensina todos os dogmas e possui todos os carismas; na esteira de Paulo, fala-se
da Igreja como do mistério da nossa incorporação a Cristo por meio do batismo e
do dom do Espírito Santo; ela nasceu do lado aberto de Cristo na cruz, como Eva
do lado de Adão adormecido (3).
Tudo isso, porém, era dito ocasionalmente; a
Igreja ainda não tinha entrado em discussão. Quem será forçado a tratar dela é
justamente Agostinho, que, durante quase toda a vida, teve de lutar contra o
cisma dos donatistas. Talvez ninguém se lembrasse hoje daquela seita
norte-africana se ela não tivesse sido a ocasião de origem do que hoje chamamos
de eclesiologia, ou seja, um discurso refletido sobre o que é a Igreja no
desígnio de Deus, a sua natureza e o seu funcionamento.
Por volta de 311, um certo Donato, bispo da
Numídia, se recusou a receber novamente na comunhão eclesial aqueles que
durante a perseguição de Diocleciano tinham entregado os livros sagrados às
autoridades estatais, renegando a fé para salvar a vida. Em 311, foi eleito
bispo de Cartago um certo Ceciliano, acusado, erradamente segundo os católicos,
de ter traído a fé durante a perseguição de Diocleciano. Opôs-se a esta
nomeação um grupo de setenta bispos do norte africano, liderados por Donato.
Eles depuseram Ceciliano e elegeram em seu lugar Donato. Excomungado pelo papa
Milcíades em 313, ele permaneceu no seu posto, provocando um cisma que criou no
norte da África uma Igreja paralela à católica, mantida até a invasão dos
vândalos, um século depois.
Durante a polêmica, eles tentaram justificar
a sua posição com argumentos teológicos. Foi para refutá-los que Agostinho
desenvolveu, pouco a pouco, a sua doutrina da Igreja. Isto aconteceu em dois
contextos diferentes: nas obras escritas diretamente contra os donatistas e nos
seus comentários à Escritura e discursos ao povo. É importante distinguir entre
esses dois contextos porque, conforme cada um, Agostinho insistirá mais em
alguns aspectos da Igreja do que em outros e só a partir do conjunto é que pode
ser entendida a sua doutrina completa. Vamos ver, portanto, brevemente, quais
são as conclusões a que o santo chega em cada um dos dois contextos, a começar
pelo diretamente antidonatista.
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