Quando
Constantino em 313 concedeu aos seus súditos a liberdade religiosa, ele
garantiu aos cristãos um tempo de paz depois de muita perseguição. A Igreja
passa da situação de perseguida para um certo status de “religião proeminente”,
principalmente pela relação e influência da mãe do imperador, a imperatriz
Helena, mais tarde considerada santa pelos cristãos.
Os mártires já não existem. A forma de demonstrar
amor até as últimas consequências a Cristo já não existe. Os cristãos que antes
não tinham direito algum agora passam a existirem, a serem vistos e adulados. Isto
significava, evidentemente, entregar o cristianismo a um perigo mortal: “o
pacto com o mundo e suas seduções”.
Enquanto os cristãos de Alexandria, de
Constantinopla, de Roma, regressavam à normalidade dos dias e dos direitos,
alguns ascetas, aterrados com esse possível pacto, fugiam correndo, para se
embrenharem nos desertos da Cétia e da Nitria, da Palestina e da Síria.
Embrenhavam-se num radical silêncio que só alguns dos seus ditos conseguiram
romper, sinais dirigidos a um céu insondável. O martírio de sangue dá lugar ao “martírio
branco”, isto é, ao martírio da vontade, onde não se luta mais contra os maus
deste mundo, mas contra o próprio mal dentro de nós (concupiscência) e fora de
nós (o Diabo).
O monaquismo surge como proposta de luta
contra o mal e de testemunho ao mundo, da mensagem de Jesus Cristo. O asceta
será aquele que viverá de maneira radical o seu batismo e dele falará ao mundo
mais por obras que por palavras. Homens e mulheres vão ao deserto não tanto
para fugirem do mundo, mas para enfrentarem seus maiores desafios. Esses mestres
cristãos do deserto floresceram, explodiram num ápice que durou três séculos,
do III ao VI depois de Cristo.
Os ditos e feitos dos Padres — lógoi kai
erga — foram recolhidos em todos os tempos com extrema piedade, porque eram
quase sempre nozes duríssimas, intragáveis, por trazerem em si a totalidade da
vida, impossíveis de partir com os dentes, como nas fábulas, no instante do
perigo extremo, e além disso os Padres, na maior parte das vezes, recusavam-se
a escrevê-los. São os chamados “apoftegmas”, “sentenças”, “ditos”, “aforismos”
dos Padres do Deserto. A partir da vivência, os santos homens e as santas
mulheres nos deixaram um manancial de sabedoria, disciplina, espiritualidade e
o testemunho de uma fá autêntica.
Os apoftegmas são, em sua maioria, pequenas
histórias ou mesmo, frases de sabedoria dos Padres do Deserto. Também existem
histórias mais longas, como que “biografias de santos” para servirem de
edificação para os cristãos. O esquema geral de um apoftegma costuma ser
“pergunta e resposta” ou só “a palavra do ancião”, do Abba ou da Amma. Muito
conhecidos no meio monástico, os Ditos dos Padres do Deserto atravessaram os
séculos e as paredes dos mosteiros. Acessível a todos hoje, esta sabedoria é a
mais simples “psicologia aplicada” e também a mais pura espiritualidade, isto
é, a reflexão de uma vida segundo o Espírito de Deus.
Vamos apresentar alguns apoftegmas:
1.
“Tendo um grande anacoreta perguntado: ‘Satã, por que me combates assim?’,
escutou Satã lhe responder: ‘És tu que me combates com toda força’” (Santo
Antão).
2.
“A origem do fruto é a flor e a origem da vida ativa é a moderação; quem
domina o próprio estômago, diminui as paixões; pelo contrário, quem é subjugado
pela comida, aumenta os prazeres. Assim como Amalec é a origem dos povos,
também a gula é a origem das paixões. Assim como a lenha é alimento do fogo, a
comida é o alimento do estômago. Muita lenha proporciona uma grande chama e a
abundância da comida nutre a concupiscência. A chama se extingue quando há
menos lenha e a miséria de comida apaga a concupiscência”. (Evágrio Pôntico).
3.
Abba Poemén disse de Abba João, o Anão,
que ele tinha rezado a Deus para que retirasse para longe dele as paixões, de
modo que ele ficasse livre de preocupações. Então ele foi contar ao ancião
isto; “encontro-me em paz, sem nenhum inimigo”. O ancião lhe disse, “vá,
implore a Deus que lhe envie as lutas de modo que você recupere a aflição e
humildade que você possuía, pois é pela luta que as almas progridem.” Então,
ele implorou a Deus e quando as batalhas vieram ele não mais rezou que elas
fossem afastadas, mas disse, “Senhor, dai-me força para a luta.”
4.
Um irmão interrogou o abade Agatão: “Tenho uma ordem a executar, mas num sítio
onde terei de pelejar bastante. Quero ir para obedecer, mas temo a guerra”.
Respondeu-lhe o ancião: “Em teu lugar Agatão cumpriria a ordem e ganharia a
guerra”.
5.
Um irmão, que vivia como anacoreta, estava turbado. Ele foi até a morada do
abade Teodoro de Farméia e lhe declarou sua inquietação. Disse-lhe o ancião:
“Vai, conserva a alma na humildade, sê submisso aos outros e vive com eles”.
Ele partiu para a montanha e foi viver com outros.
Depois
retornou ao ancião e lhe disse: “Não encontrei o repouso vivendo entre os
homens”. Disse-lhe o ancião: “Se não encontras repouso nem na solidão, nem na
companhia dos irmãos, por que vieste a ser monge? Não fora para suportar penas?
Mas dize-me: há quanto tempo vestes o hábito?” – “Oito anos”, respondeu ele.
Replicou o ancião: “Crê em mim, eis que o visto há sessenta anos e não houve um
dia de repouso para mim, enquanto que tu o queres após oito anos?” Ao escutar
isso partiu reconfortado.
6.
“Quem não for edificado pelo meu
silêncio, não será edificado pela minha fala”. (Abba Teófilo, o
Arcebispo)
7.
“Pusemos de um lado a carga leve da
autocrítica, e carregamo-nos do grande peso que é a auto-justificação” (João,
o Anão).
8.
Um irmão que morava com outros irmãos, perguntou ao Abba Bessarião: "Que
hei de fazer?" Respondeu-lhe o ancião: "cala-te, e não te
compares com outros".
9.
Amma Sinclética disse
"Há muitos que vivem nas montanhas e se comportam como se eles estivessem
na cidade; eles estão esperando seu tempo. É possível serem solitários em sua
mente enquanto vivem em uma multidão; e é possível para aqueles que são
solitários viver em meio a multidão de seus próprios pensamentos."
10.
Amma Teodora disse que nem
o ascetismo, nem vigílias, nem qualquer tipo de sofrimento são capazes de
salvar. Apenas a verdadeira humildade pode fazer isso. Havia quem fosse capaz
de banir os demônios. E ele perguntou- lhes: "O que faz vocês irem embora?
É o jejum?" Eles responderam: "Nós não comemos ou bebemos."
"São as vigílias?". Eles responderam: "Nós não dormimos."
"Então o que pode mandá-los embora?". Eles responderam: "Nada
pode superar a nós, exceto a humildade". Amma Teodora disse: "Você vê
como a humildade é vitoriosa sobre os demônios?".
11.
“Tenho sofrido horrorosamente, mas
isto o que importa para quem combate sob o estandarte de Cristo? Imputaram-me
um crime infamante, mas sei ir ao reino dos Céus tanto pela infâmia quanto pela
boa fama”. (Amma Paula).
12. “Deus me é testemunha de que não faço nada
senão pelo seu nome, e que só tenho um desejo: morrer na miséria e ser enterrada
em um lençol emprestado”. (Santa Paula do deserto).
13. “Tudo não convém a todos. Cada qual deve se
conhecer bem para escolher bem. Para umas a vida em uma comunidade é boa, para
outras é melhor viver só. Há plantas que se dão bem numa terra úmida. Há outras
que se dão bem numa terra seca. Acontece o mesmo com os seres humanos”. (Amma
Sinclética).
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