Conclusão: os valores para nós
Embora se tenha muitas vezes a impressão de
que a Santa Regra fora escrita para o abade, tendo-se em vista as diversas
exortações e responsabilidades atribuídas a ele, São Bento quis dirigir sua
palavra e seu convite para a vida cenobítica a todos, indistintamente, desde
que se preocupassem com a vida em Deus: “A ti, pois, se dirige agora a minha
palavra, quem quer que sejas que renunciando às próprias vontades, empunhas as
gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo
Senhor, verdadeiro Rei” (RB Prol.3); “Tu, pois, quem quer que sejas, que te
apressas para a pátria celeste, realiza com o auxílio de Cristo esta mínima
Regra de iniciação aqui escrita (...)” (RB 73,8).
É certo que cabe ao abade o maior exercício
da discrição, pois será próprio de seu ofício discernir tudo, temperar tudo (cf
RB 2,24-29); porém, a discrição deve tornar-se também característica dos filhos
de São Bento e mais, de todos os cristãos. Como belamente apresentou Dom
Germain Morin OSB, ao praticar a virtude da discrição, participamos do agir de
Deus, de sua ciência e de sua providência: “Deus só é o Ser soberanamente
discreto: ninguém O iguala na arte de tratar cada alma conforme as respectivas
necessidades, de conduzi-la ao fim sobrenatural respeitando a natureza livre da
mesma. O ideal do homem será quanto possível, aproximar-se desta arte divina,
que lhe é manifestada em cada pormenor das relações do mundo com Deus”.
Para nós, a discrição tece valores
fundamentais para a vida cristã e para a vida propriamente monástica. Importa
descobri-los, apreciá-los e, diligentemente, praticá-los. Apresentemos alguns:
· A discrição acolhe os fracos e os fortes.
Já no Prólogo da Regra, São Bento “promete”
ao irmão mais frágil que não estabelecerá nada de áspero ou pesado e que se o
estabelecido assim parecer, que este não fuja logo (cf. RB Pró.46-48). São
Bento considera, assim, a fraqueza humana; o homem será homem em todas as
épocas e, por sua debilidade própria, precisará sempre de cuidados.
Esta preocupação pela fraqueza humana, não
apenas percorre o texto da Regra (cf. RB 35,3; 37,2; 40,3; 42,4; 48,9; 48,25;
55,21; 64,13; 68,2; 72,5), mas volta fortemente no capítulo 64,19 quando a
expressão “non refugiant” lembra aquela do Prólogo: “non ilico pavore perterritus refugias
viam salutis” (cf. RB Prol.48).
A discrição, no entanto, não olha apenas para
o fraco, mas também para o forte: “(...) equilibre tudo, de modo que haja o que
os fortes desejam (...)” (RB 64,19); (cf. também RB 40,4). A fortaleza
apresentada pela Regra seve ser vista com humildade e não com presunção, como
esforço pessoal: “Seja vedada no mosteiro toda ocasião de presunção, (...)”
O valor aqui é óbvio: seja no mosteiro, seja
noutra comunidade, encontraremos os fracos e os fortes; não cabe julgar os
fracos ou condená-los nem invejar os fortes ou depreciá-los. Em qualquer
comunidade, monástica ou não, devemos aprender a acolher, principalmente quando
alguém é muito diferente de nós. Devemos trazer sempre diante dos olhos aquela
máxima do Apóstolo: “Com os fracos me fiz fraco e com os fortes me fiz forte.”
· A discrição respeita os diversos temperamentos
A discrição é uma forma de prudência e, como
tal, não se apressa em julgar ou decidir. Ela considera tudo, pondera tudo, não
de maneira estreita, mas larga. Esta qualidade lhe faz abraçar todos os
temperamentos (cf. RB 2,30-32).
Deus se une à natureza do homem se este assim
o desejar, recriando-o a partir da graça e não do pecado que o ferira. Esta
ação de Deus, porém, não anula o homem, não o descaracteriza, mas age naquilo
que o homem é. O axioma teológico, “a graça supõe a natureza”, resume bem esta
discrição de Deus. Daí termos santos tão diversos e, por vezes, tão diferentes
uns dos outros, pois Deus respeita seus temperamentos, suas aptidões, suas
histórias pessoais: “(...) excetuando-se a fé, a esperança e a caridade, que
foram comuns a todos, assim como os habitus
das virtudes morais, pode-se dizer que cada qual representa uma criação
original” (Dom Germain Morin OSB).
Deus sabe distinguir e respeitar os diversos
temperamentos e falar a cada um deles de forma pessoal. Nós, porém, pouco
sabemos desta arte... Infelizmente, numa sociedade por demais massificada e
massificadora, somos tentados a ser indiscretos; não respeitamos a
individualidade do outro (diferente de individualismo) nem seu ritmo próprio
(diferente de isolamento).
A igualdade absoluta e a falta de respeito às
individualidades pode trazer às comunidades, paroquiais ou religiosas, diversas
perturbações não apenas de convivência, mas também psíquicas, como paranóias,
obsessões, histerias, etc. “A igualdade monástica, ao contrário, é a igualdade
proporcional, que leva em consideração as diferenças físicas e morais, os dons
da natureza e os da graça” (Dom Germain Morin OSB).
Na comunidade paroquial, que é comunidade
humana, somos convidados à arte de conviver com os diversos temperamentos e
usar da discrição, para que a diversidade de personalidades seja respeitada e
que, sobretudo, a caridade seja o bem comum que nos põe numa mesma casa, sob a
direção de um mesmo pai e em torno de um mesmo altar; pois o cristão faz parte
de um exército, não luta a sós e ainda: “(...) que nos conduza juntos para a
vida eterna.” (RB 72,12)
· A discrição difunde a paz no interior da comunidade
Como aludimos acima, a discrição torna a vida
comunitária mais branda, mais afável, porque cada pessoa é respeitada e
valorizada por aquilo que lhe é particular, próprio e porque a fé que nos une
não é uma idéia, como lembrou o Papa Bento XVI, mas amor (cf. Audiência Geral,
26/11/2008). A paz é uma preocupação reiterada de São Bento: “Procura a paz
segue-a” (cf. Prol.17), “voltar à paz” (RB 4,73), “todos os membros estarão em
paz” (RB 34,5), “defesa da paz” (RB 65,11), são expressões da São Bento.
Na comunidade que testemunha a discrição, que
contempla cada membro como mistério e que “dilata seu coração” (Prol.49) por um
amor efetivo que suporta as imperfeições uns dos outros, abre-se espaço para a
compaixão, para a mútua obediência e para o desprendimento de si (cf. RB
72,5-10). E se tais coisas existem nesta comunidade, existe a paz que é fruto
do amor a Deus e aos irmãos.
No entanto, estamos numa comunidade real e
não ideal, por isso é bom ressaltar o que José Luiz Martinez OSA apresentou em
sua obra “De corpo e espírito – vida
presbiteral e religiosa integrada”: “Um bom ambiente e equilíbrio
comunitário não é indicado pela presença ou ausência de problemas, mas pela
capacidade de seus membros para lidar com as tensões e dificuldades que eles
provocam e resolvê-los”. Então, é certo que a paz é fruto da presença de Deus,
mas também é empenho da parte dos irmãos (cf. RB 4,73 e 34,5). Não podemos nos
esquecer de que vivemos na tensão do humano para o transcendente; nesta tensão
é que o homem busca a santidade.
Existindo paz na comunidade, a assimilação
deste dom por todos os membros é muito mais fácil: “A vida contínua em
atmosfera de paz comunica-se involuntariamente à alma e afugenta tudo que é
áspero, penoso, exagerado e polêmico”. (Dom Tomaz Graf).
Devemos ainda dizer que, segundo São Bento,
dois elementos terão capital importância no cultivo da paz: o abade e a ordem:
“Por isso achamos conveniente, para a defesa da paz e da caridade, que dependa
do arbítrio do abade a organização do seu mosteiro” (RB
65,11). Caberá ao abade e à sua ordenação das coisas, levar a paz para os
irmãos. Esta paz, seguramente, só advirá quando a vontade dos irmãos se unir à
vontade de Deus.
· A discrição nos projeta para o essencial
Em meio a tantas atividades boas e
edificantes e a tantas outras ocupações duvidosas ou perigosas ao nosso ser de
cristão, a virtude da discrição nos ajuda a distinguir na vida espiritual e
humana o essencial do contingente. Noutras palavras, o cultivo da discrição nos
leva a elencar prioridades em nossa vida. E qual é a maior delas? Melhor, qual
a prioridade da qual decorrem depois tantas outras? A salvação!
No Prólogo, versículo 48, São Bento expõe
essa preocupação: “(...) não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da
salvação, que nunca se abre senão por estreito início”. É o desejo da salvação
o essencial para todos nós; sem este desejo, nos perdemos na vida.
Sendo a “salus animae” o essencial da vida,
todas as outras coisas se tornarão para nós “causas instrumentais” para
adquiri-la. Neste processo, São Bento aponta o “progresso da vida monástica e
da fé” (cf. Prol.49) como principal norteador para se chegar ao fim, que é a
vida do reino.
Em todas essas instâncias, a discrição tem
papel fundamental na vida do monge, na vida do cristão. É pondo em prática a
grande norma de São Bento (“ne quid nimis” – “em nada haja excesso”) que
chegaremos “aos maiores cumes da doutrina e das virtudes” (cf. RB 73,9).
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Pesquisa bibliográfica
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MAGNO, Gregório, Vida e Milagres de São Bento – Livro Segundo dos
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