Testemunhar e anunciar a mensagem cristã, conformando-se com Jesus Cristo. Proclamar a misericórdia de Deus e suas maravilhas a todos os homens.

Páginas

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Estudo sobre a discrição (Última parte)



Conclusão: os valores para nós


  Embora se tenha muitas vezes a impressão de que a Santa Regra fora escrita para o abade, tendo-se em vista as diversas exortações e responsabilidades atribuídas a ele, São Bento quis dirigir sua palavra e seu convite para a vida cenobítica a todos, indistintamente, desde que se preocupassem com a vida em Deus: “A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei” (RB Prol.3); “Tu, pois, quem quer que sejas, que te apressas para a pátria celeste, realiza com o auxílio de Cristo esta mínima Regra de iniciação aqui escrita (...)” (RB 73,8).

  É certo que cabe ao abade o maior exercício da discrição, pois será próprio de seu ofício discernir tudo, temperar tudo (cf RB 2,24-29); porém, a discrição deve tornar-se também característica dos filhos de São Bento e mais, de todos os cristãos. Como belamente apresentou Dom Germain Morin OSB, ao praticar a virtude da discrição, participamos do agir de Deus, de sua ciência e de sua providência: “Deus só é o Ser soberanamente discreto: ninguém O iguala na arte de tratar cada alma conforme as respectivas necessidades, de conduzi-la ao fim sobrenatural respeitando a natureza livre da mesma. O ideal do homem será quanto possível, aproximar-se desta arte divina, que lhe é manifestada em cada pormenor das relações do mundo com Deus”.

  Para nós, a discrição tece valores fundamentais para a vida cristã e para a vida propriamente monástica. Importa descobri-los, apreciá-los e, diligentemente, praticá-los. Apresentemos alguns:

·       A discrição acolhe os fracos e os fortes.

  Já no Prólogo da Regra, São Bento “promete” ao irmão mais frágil que não estabelecerá nada de áspero ou pesado e que se o estabelecido assim parecer, que este não fuja logo (cf. RB Pró.46-48). São Bento considera, assim, a fraqueza humana; o homem será homem em todas as épocas e, por sua debilidade própria, precisará sempre de cuidados.

  Esta preocupação pela fraqueza humana, não apenas percorre o texto da Regra (cf. RB 35,3; 37,2; 40,3; 42,4; 48,9; 48,25; 55,21; 64,13; 68,2; 72,5), mas volta fortemente no capítulo 64,19 quando a expressão “non refugiant” lembra aquela do Prólogo: “non ilico pavore perterritus refugias viam salutis” (cf. RB Prol.48).

  A discrição, no entanto, não olha apenas para o fraco, mas também para o forte: “(...) equilibre tudo, de modo que haja o que os fortes desejam (...)” (RB 64,19); (cf. também RB 40,4). A fortaleza apresentada pela Regra seve ser vista com humildade e não com presunção, como esforço pessoal: “Seja vedada no mosteiro toda ocasião de presunção, (...)”

  O valor aqui é óbvio: seja no mosteiro, seja noutra comunidade, encontraremos os fracos e os fortes; não cabe julgar os fracos ou condená-los nem invejar os fortes ou depreciá-los. Em qualquer comunidade, monástica ou não, devemos aprender a acolher, principalmente quando alguém é muito diferente de nós. Devemos trazer sempre diante dos olhos aquela máxima do Apóstolo: “Com os fracos me fiz fraco e com os fortes me fiz forte.”

·       A discrição respeita os diversos temperamentos

  A discrição é uma forma de prudência e, como tal, não se apressa em julgar ou decidir. Ela considera tudo, pondera tudo, não de maneira estreita, mas larga. Esta qualidade lhe faz abraçar todos os temperamentos (cf. RB 2,30-32).

  Deus se une à natureza do homem se este assim o desejar, recriando-o a partir da graça e não do pecado que o ferira. Esta ação de Deus, porém, não anula o homem, não o descaracteriza, mas age naquilo que o homem é. O axioma teológico, “a graça supõe a natureza”, resume bem esta discrição de Deus. Daí termos santos tão diversos e, por vezes, tão diferentes uns dos outros, pois Deus respeita seus temperamentos, suas aptidões, suas histórias pessoais: “(...) excetuando-se a fé, a esperança e a caridade, que foram comuns a todos, assim como os habitus das virtudes morais, pode-se dizer que cada qual representa uma criação original” (Dom Germain Morin OSB).

  Deus sabe distinguir e respeitar os diversos temperamentos e falar a cada um deles de forma pessoal. Nós, porém, pouco sabemos desta arte... Infelizmente, numa sociedade por demais massificada e massificadora, somos tentados a ser indiscretos; não respeitamos a individualidade do outro (diferente de individualismo) nem seu ritmo próprio (diferente de isolamento).

  A igualdade absoluta e a falta de respeito às individualidades pode trazer às comunidades, paroquiais ou religiosas, diversas perturbações não apenas de convivência, mas também psíquicas, como paranóias, obsessões, histerias, etc. “A igualdade monástica, ao contrário, é a igualdade proporcional, que leva em consideração as diferenças físicas e morais, os dons da natureza e os da graça” (Dom Germain Morin OSB).

  Na comunidade paroquial, que é comunidade humana, somos convidados à arte de conviver com os diversos temperamentos e usar da discrição, para que a diversidade de personalidades seja respeitada e que, sobretudo, a caridade seja o bem comum que nos põe numa mesma casa, sob a direção de um mesmo pai e em torno de um mesmo altar; pois o cristão faz parte de um exército, não luta a sós e ainda: “(...) que nos conduza juntos para a vida eterna.” (RB 72,12)

·       A discrição difunde a paz no interior da comunidade

  Como aludimos acima, a discrição torna a vida comunitária mais branda, mais afável, porque cada pessoa é respeitada e valorizada por aquilo que lhe é particular, próprio e porque a fé que nos une não é uma idéia, como lembrou o Papa Bento XVI, mas amor (cf. Audiência Geral, 26/11/2008). A paz é uma preocupação reiterada de São Bento: “Procura a paz segue-a” (cf. Prol.17), “voltar à paz” (RB 4,73), “todos os membros estarão em paz” (RB 34,5), “defesa da paz” (RB 65,11), são expressões da São Bento.

  Na comunidade que testemunha a discrição, que contempla cada membro como mistério e que “dilata seu coração” (Prol.49) por um amor efetivo que suporta as imperfeições uns dos outros, abre-se espaço para a compaixão, para a mútua obediência e para o desprendimento de si (cf. RB 72,5-10). E se tais coisas existem nesta comunidade, existe a paz que é fruto do amor a Deus e aos irmãos.

  No entanto, estamos numa comunidade real e não ideal, por isso é bom ressaltar o que José Luiz Martinez OSA apresentou em sua obra “De corpo e espírito – vida presbiteral e religiosa integrada”: “Um bom ambiente e equilíbrio comunitário não é indicado pela presença ou ausência de problemas, mas pela capacidade de seus membros para lidar com as tensões e dificuldades que eles provocam e resolvê-los”. Então, é certo que a paz é fruto da presença de Deus, mas também é empenho da parte dos irmãos (cf. RB 4,73 e 34,5). Não podemos nos esquecer de que vivemos na tensão do humano para o transcendente; nesta tensão é que o homem busca a santidade.

  Existindo paz na comunidade, a assimilação deste dom por todos os membros é muito mais fácil: “A vida contínua em atmosfera de paz comunica-se involuntariamente à alma e afugenta tudo que é áspero, penoso, exagerado e polêmico”. (Dom Tomaz Graf).

  Devemos ainda dizer que, segundo São Bento, dois elementos terão capital importância no cultivo da paz: o abade e a ordem: “Por isso achamos conveniente, para a defesa da paz e da caridade, que dependa do arbítrio do abade a organização do seu mosteiro” (RB 65,11). Caberá ao abade e à sua ordenação das coisas, levar a paz para os irmãos. Esta paz, seguramente, só advirá quando a vontade dos irmãos se unir à vontade de Deus.
 
·       A discrição nos projeta para o essencial

  Em meio a tantas atividades boas e edificantes e a tantas outras ocupações duvidosas ou perigosas ao nosso ser de cristão, a virtude da discrição nos ajuda a distinguir na vida espiritual e humana o essencial do contingente. Noutras palavras, o cultivo da discrição nos leva a elencar prioridades em nossa vida. E qual é a maior delas? Melhor, qual a prioridade da qual decorrem depois tantas outras? A salvação!

  No Prólogo, versículo 48, São Bento expõe essa preocupação: “(...) não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito início”. É o desejo da salvação o essencial para todos nós; sem este desejo, nos perdemos na vida.

  Sendo a “salus animae” o essencial da vida, todas as outras coisas se tornarão para nós “causas instrumentais” para adquiri-la. Neste processo, São Bento aponta o “progresso da vida monástica e da fé” (cf. Prol.49) como principal norteador para se chegar ao fim, que é a vida do reino.

  Em todas essas instâncias, a discrição tem papel fundamental na vida do monge, na vida do cristão. É pondo em prática a grande norma de São Bento (“ne quid nimis” – “em nada haja excesso”) que chegaremos “aos maiores cumes da doutrina e das virtudes” (cf. RB 73,9).




**************************************************************

Pesquisa bibliográfica

 

 ANOTAÇÕES DAS AULAS DE SANTA REGRA, Rio de Janeiro, 2009.
 COLOMBÁS, García M., La Regla de San Benito, BAC, Madri, 1978.
 DE VOGÜÉ, Adalbert, O que diz São Bento, uma leitura da Regra, Vida
          monástica 25, Abadia de Bellefontaine, 1995.
 DICIONÁRIO DE TERMOS DA FÉ,  EPS/ed. Santuário, Aparecida.
 GRAF, Tomaz, Vida beneditina, Coleção monástica I – Mosteiro de São
          Bento, Rio de janeiro, 1937.
 MARTÍNEZ, José L., De corpo e espírito, vida presbiteral e religiosa
          Integrada, Paulus, São Paulo, 1996.
 MAGNO, Gregório, Vida e Milagres de São Bento – Livro Segundo dos
         Diálogos, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1977.
 MORIN, G., O ideal monástico e a vida cristã dos primeiros dias, Mosteiro                              
          da Santa Cruz, Juiz de Fora, 2002.
 REGRA DE SÃO BENTO, Lumen Christi, Rio de Janeiro, 1980.
 VÁRIOS AUTORES, San Benito, su vida y su Regla, BAC, Madri, 1954.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Você pode deixar seu comentário ou sua pergunta. O respeito e a reverência serão sempre bem vindas.