Introdução
Em sua obra Diálogos, livro II, São Gregório Magno se detêm, exclusivamente, na
figura do “homem de Deus”, São Bento. Apresentará a sua “vida” não como as
biografias modernas, mas a partir de suas palavras e de seus milagres,
delineando o perfil do santo como homem sábio nas coisas de Deus (cf. Diál.II, Prol.)
e homem amigo dos homens (cf. Diál.II, 1). São Gregório louvará não apenas a
clareza da linguagem de São Bento, mas sobretudo a discrição na sua doutrina
(cf. Diál.II, 36).
O vocábulo discretio e sua compreensão não são originais de São Bento, mas
tomado por ele, certamente, da obra de Cassiano (Colações II). Nesta obra, há
um verdadeiro tratado sobre a discretio:
a graça da discrição, a importância da discrição, a ignorância da discrição,
referências da discrição nas Escrituras Sagradas, aquisição da discrição, etc.
Diferente de Cassiano, até porque não
convinha ao gênero “Regra”, Bento não faz um tratado sobre a discrição, mas a
apresenta como virtude necessária e integrante da vida de um mosteiro, a
começar pelo seu abade e expansiva a todos os que desejam servir a Deus de
coração sincero e conviver com os irmãos de maneira fraterna.
Poderíamos dizer que Cassiano foi “teórico”
da discretio, enquanto Bento foi
“prático”, encarnando em sua vida e na de seus monges a “mãe das virtudes” (RB 64,19).
A discretio perpassa toda a Santa
Regra, se não explícita, implicitamente.
Segundo Dom Tomaz Graf OSB, “se há uma
virtude propriamente beneditina, é a da discrição” e diríamos também que , por
causa dela, a Regra beneditina
prevaleceu e se perpetuou pelos tempos; mais, fez também a Regra influenciar
tantas outras Regras e marcar profundamente a vida de outros tantos
consagrados. Modernamente, tal influência se fez ver na obra de Santo Inácio de
Loyola quando apresentou, pormenorizadamente, a discrição como “discernimento”
em seus “Exercícios espirituais”.
Mas o que vem a ser discrição? A palavra
discrição vem do grego "diákrisis" e da sua correspondente latina discretio.
Segundo o Dicionário de Termos da Fé , é a “arte de distinguir e de
reter efetivamente o que, nos atos ou nas palavras, não deve ser feito nem
dito; arte de guardar um segredo, de não fazer perguntas curiosas, de não
forçar a intimidade dos outros, de não lhes impor uma presença incômoda e
inoportuna. Disposição pela qual se evita, na vida espiritual ou na disciplina
religiosa, tudo o que seria excesso, singularidades ou falta de equilíbrio. É a
virtude da moderação e justo meio, a reguladora ou o árbitro das outras
virtudes”. Estas últimas definições parecem ser, de fato, o que Cassiano
apresentou e que São Bento tão bem demonstrou em sua Regra.
São Bento considera a fraqueza humana, olha
para seus monges como indivíduos, vê concretamente cada homem. Neste aspecto o
consideramos um “humanista”, porque se debruça sobre a questão do homem, não
como um filósofo ou jurista, mas como pai que se preocupa com a salvação de
todos os seus filhos (cf. Prólogo da RB).
Em sua preocupação de levar todos para Deus,
Bento se utiliza da ferramenta da discretio;
pelos diversos temperamentos, pelos altos e baixos, pelas diversas
necessidades, devem haver cuidados pessoais e únicos da parte do abade. Não se
pode nivelar. Sem a discretio não
existe paternidade espiritual.
Vista nestes termos, a discrição pode ser
entendida por “medida”, “discernimento”, “moderação”; ela regula os excessos,
persegue o fundamental e dá equilíbrio a todas as coisas. No dizer de Cassiano:
“É ela que, deixando de lado os dois excessos contrários, ensina o monge a
andar na estrada real. Nem o deixa desviar-se à direita, num fervor excessivo
de virtudes com que presume totalmente ir além dos limites da justa temperança;
nem lhe permite, quando seduzido pelo relaxamento, dobrar à esquerda e descer
para os vícios, afrouxando-se na tibieza da alma, sob pretexto de governar o
corpo” (Colações II, 2).
Neste trabalho, apresentaremos, de maneira
sucinta, a virtude da discretio em Cassiano
e de maneira mais larga na Santa Regra e concluiremos levantando alguns valores
para a vida cristã e monástica. Omitiremos, pela brevidade do estudo, outras
fontes do período patrístico, medieval e moderno.
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