Estudo sobre a discrição (Parte 3)

2. A discrição na Regra de São Bento

2.1.: O texto

  Ainda que a palavra discretio só apareça três vezes na Regra (RB 64,18; 64,19 e 70,6), toda ela está imbuída de seu sentido e compreensão. Vejamos alguns exemplos:

·       Cap 2,24: “(...) temperando as ocasiões umas com as outras, os carinhos com os rigores, mostre a severidade de um Mestre e o pio afeto de um pai, (...)”;

·       Cap 18,22: “Advertimos de modo especial que, se porventura essa distribuição dos salmos não agradar a alguém, que ordene como achar melhor”;

·       Cap 24,1: “A medida tanto da excomunhão como da disciplina, deve regular-se segundo a espécie da falta (...)”;

·       Cap 30,1: “Cada idade e cada inteligência deve ser tratada segundo medidas próprias”;

·       Cap 34,1-4: “Como está escrito, repartia-se para cada um conforme lhe era necessário. Não dizemos, com isso, que deva haver acepção de pessoas, o que não aconteça, mas sim consideração pelas fraquezas, de forma que quem precisar de menos dê graças a Deus e não se entristeça por isso; quem precisar de mais, humilhe-se em sua fraqueza e não se orgulhe por causa da misericórdia que obteve”;

·       Cap 40,1: “Cada um recebe de Deus um dom particular, este de um modo, aquele de outro”;

·       Cap 48,9: “Tudo, porém, se faça comedidamente por causa dos fracos”;

·      Cap 53,20: “(...) se precisarem auxiliares, sejam-lhes concedidos; por outro lado, quando estão livres, obedeçam ao que lhes for ordenado”;

·       Cap 55,1-2: “Sejam dadas vestes aos irmãos de acordo com as condições e temperatura dos lugares em que habitam, porque, nas regiões frias, tem-se necessidade de mais, e nas quentes, de menos”;

  Poderíamos multiplicar os exemplos, mas para não nos tornarmos exaustivos, achamos bastar os apresentados. Há, porém, um ápice da doutrina da discretio na Santa Regra, o capítulo 64, sobre a ordenação do abade: “Seja prudente e refletido nas suas ordens, e quer seja de Deus, quer do século o trabalho que ordenar, faça-o com discernimento e equilíbrio, lembrando-se da discrição do santo Jacó, quando diz: ‘Se fizer meus rebanhos trabalhar andando demais, morrerão todos num só dia’. Assumindo esse e outros testemunhos da discrição, mãe das virtudes, equilibre tudo de tal modo, que haja o que os fortes desejam e que os fracos não fujam” (RB 64,17-19). Esta preocupação de São Bento pelos fracos já vem atestada desde o início da Regra (cf. Prol. 46 e 48) e parece mesmo ditá-la e caracterizá-la. Falaremos disso mais adiante.

  O texto da Regra por mais que proponha uma disciplina e se configure como “lei” para os mosteiros, não cai no rigorismo, mas também nem por isso pode ser considerado laxo. A preocupação de São Bento era tornar o monaquismo acessível a muitos, tirando a dura impressão que se tinha da ascese, pela influência dos monges orientais. Exemplo disto são as suas prescrições sobre o jejum e a penitência, quase idênticos às dadas pela Igreja naquele tempo. Diante de tal discrição e largueza de São Bento, talvez muitos Padres do deserto se escandalizassem, pois ao invés de ordenar algo difícil ou rigoroso, coloca no centro da questão da ascese a humildade e a obediência.

  Em cada página da Santa Regra aparece a discrição como coisa fundamental e fruto da própria experiência de São Bento, pois é patente ver que o texto foi compilado aos poucos, com retoques e acréscimos. Sem dúvida alguma, a discrição foi uma virtude constantemente aprofundada pelo santo em suas experiências cenobíticas, quer em Vicovaro quer em Montecassino.

  Finalmente, é importante ressaltar que a discrição dá ao texto da Regra uma autenticidade incomum. Comenta Dom Tomaz Graf OSB: “Quando se compara essa Regra com as daquele tempo, sente-se a caridade prudente e o equilíbrio de São Bento, que considera o essencial da ascese, a saber: a perfeição da caridade”. De fato, São Bento reconhece os limites de seu tempo e a fraqueza de seus monges e sua sabedoria está em adaptar-se às circunstâncias de seu tempo; numa palavra: guiar-se pela discrição.