O verbete
“exéquias” foi coligido por Raphael Bluteau em 1728 com uma definição mais
complexa em relação aos demais lexicógrafos estudiosos que lexicograficamente se
debruçaram sobre o termo nos séculos XVIII e XIX. Para Bluteau, as exéquias são
“honras[1]
funeraes na morte de alguém, advindo do verbo latino Exssequi, que significa, executar,
porque com as exéquias se acaba de fazer tudo o que se deve ao defunto.”[2]
Nesse sentido, Bluteau considera as
exéquias como um rito de passagem que não menciona a valorização do sofrimento
e, sim, desempenha um papel teológico e social. Teológico, por se tratar da
passagem da vida. E social por se tratar de um espaço-tempo em que o público e
o privado são quase indistintos e que a valorização dos rituais de morte se
tornam imprescindíveis para a vida. No caso de Minas, basta pensar a
valorização do culto a São Miguel e Almas e nas exéquias realizadas em todo o
território em honra à morte de Dom João V. Assim, todos os quatro cantos do
mundo executaram aquele ritual, como
diz o próprio Bluteau: “se acaba de fazer tudo o que se deve ao defunto”.
Como em grande parte dos verbetes de
seu dicionário, Bluteau relembra passagens clássicas, como Ovídio: “Cousa
concernente às exéquias”; e Cícero “Fazer as exequias de alguém” e “Assistir às
exéquias”.
Como sabido, a dinâmica linguística
do final do século XVIII proporciona uma alteração de sentido substancial no
verbete “exéquias”. Basta observar que as definições preparadas por Antonio de
Moraes Silva[3],
em 1789, e por Luiz Maria da Silva Pinto[4],
em 1832. Em ambos os textos, o termo “exéquias” aparece apenas como “honras
funerais”.
A partir do século XVIII até o XX,
ressaltamos duas observações, quais sejam: 1) alterações nas celebrações funerais
e 2) e alterações no vocábulo e, por conseguinte, no conceito de exéquias.
Caracterizando uma simplificação e, por vezes negação na modernidade.
Comentários
históricos sobre as exéquias
Com um sentimento de
morte sempre presente em meio ao efêmero da vida na colônia, Deus tinha que ser
lembrado. Sendo que esse era um dos papéis fundamentais da religião católica
junto à sociedade colonial e, de modo especial, da fronteira como aconteceu na
Capitania de Mato Grosso e Cuiabá. Para uma sociedade influenciada por uma
religiosidade barroca, ou seja, dramática, extremamente devocional, a morte
constituía-se em séria preocupação para os fiéis, tornando- se um dos momentos
mais significativos, para não se dizer central, dentre as práticas religiosas
da comunidade dessa época. Na sociedade colonial a morte era “administrada”
exclusivamente pela Igreja Católica. Os cemitérios públicos só foram criados a
partir do século XIX. Antes, porém, os falecidos eram enterrados
necessariamente nas igrejas ou nos cemitérios das mesmas, seguindo o ritual
católico, exceto aqueles que eram contrários à fé católica ou que cometessem
alguma ofensa grave.
Nas
constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, segue no artigo 857 a lista
das pessoas, às quais deveria ser negada a sepultura eclesiástica:
I -
Judeus, Hereges, cismaticos, & apostatas de nossa santa fé, II - Aos
blasfemos contra Deus Deus, Nossa Senhora e os Santos, III - suicidas, IV - Os
que desafiam publicamente, ou particulares, e morrem neles, V - Aos manifestos
usuários tidos, & havidos por taes,VI - manifestos roubadores, ou
violadores das igrejas, & seus bens,VII - excomungados públicos, VIII -
Religiosos professos, que no tempo de sua morte constar manifestamente, que tem
bens próprios contra as Regras de sua Religião, IX - Aos que por sua culpa
deixarem de se confessar e comungar naquele ano pela obrigação da Igreja, X -
Aos infiéis & pagãos, que nunca pediram ou receberam o sacramento do
batismo, XI - As crianças, que não forem batizadas, posto que seus pais, sejam
ou fossem cristãos.
Não se encaixando em
nenhum dos casos da lista acima citada, o cristão para não correr o risco de
sua alma ir para outro local que não fosse o céu ou o purgatório, e assim
perder a garantia de sua passagem e o descanso na outra vida do além morte, o
crente tinha que se esforçar no cumprimento de suas obrigações para com a
Igreja e, principalmente, fazer parte de uma irmandade. Fazendo parte de uma
irmandade, cumprindo as suas obrigações previstas nos compromissos, o fiel
sabia que ao morrer teria a realização de todo o ritual das exéquias, seria
enterrado em local adequado (de preferência dentro da igreja), e que os irmãos
estariam rezando por sua alma por algum tempo. Dessa maneira, a preparação do
funeral começava com bastante antecedência, antes mesmo de a pessoa demonstrar
algum sinal de doença. Tudo tinha que ser muito bem preparado: o cortejo
fúnebre, a encomenda das missas, a reserva da sepultura dentro do espaço dos
templos e o traje mortuário. Toda essa preparação acabava transformando os
funerais em eventos sociais, esta foi a forma de celebrar a morte que perdurou
por mais de trezentos anos no Brasil.
No período do século
XVIII, havia três tipos de enterramentos no âmbito das igrejas: os que
aconteciam junto aos consistórios das respectivas irmandades existentes; os
tipos de enterramentos que eram feitos dentro das igrejas, ou capelas filiais;
e, por fim, o terceiro tipo que ocorria no cemitério da igreja ou cemitério da
fábrica que se destinava ao enterramento dos pobres e escravos.
Por seu valor social de
demonstração de riqueza, poder e status, os funerais formaram uma
verdadeira tradição fúnebre, própria da cultura portuguesa e do catolicismo
tradicional, calcados no imaginário barroco.
Inseridas neste mesmo
período, também eram celebradas com muito requinte e ostentação exéquias
solenes por ocasião da morte de reis e príncipes portugueses. Eram celebrações
públicas simuladas de caráter litúrgico sem a presença do cadáver.
A
celebração das Exéquias reais era um meio, pelo qual, se buscava avivar na
população sentimentos reflexivos diante da morte. Mas, sobretudo, um mecanismo
utilizado pelas autoridades civis e eclesiásticas de interação entre os
diferentes grupos sociais que formavam a sociedade colonial ressaltando o poder
da monarquia aos súditos. Neste sentido, o resultado almejado destas
celebrações fúnebres era muito próximo dos objetivos das entradas solenes.
O
sentido teológico das exéquias
Com o dia
de sua morte, o cristão termina na Terra seu tempo de vida humana e inicia um
novo nascimento, à semelhança do Batismo, para a eternidade. O adeus ("a
Deus") ao defunto é sua "encomendação a Deus" pela Igreja. Este
é o último adeus pelo qual a comunidade cristã saúda um de seus membros antes
que o corpo dele seja levado à sepultura.
A igreja, que se reconhece mãe e que
acompanhou toda a vida do fiel, faz-se presente também neste momento de Páscoa:
“a vida não é tirada, mas transformada”. Neste momento derradeiro, o cristão
tem necessidade de purificações para se vestir com a veste nupcial, que é a
realidade do céu.
As exéquias são uma celebração litúrgica da
Igreja que têm duas razões primordiais: primeiro preparar o fiel para o
passamento e apresentação diante de Deus, no juízo particular e segundo,
preparar os presentes para que também reflitam sobre este momento definitivo.
Ao celebrar os funerais, professam-se duas verdades do Credo: a “Comunhão dos
santos” e a “Ressurreição dos mortos”; pela primeira, revela-se a fé de que
estamos unidos aos irmãos que partiram, a Igreja padecente, e que podemos rezar
por eles e pela segunda verdade, crê-se que no juízo final, os mortos terão
seus corpos revitalizados, tanto os bons quanto os maus.
A liturgia romana propõe três tipos de
celebração dos funerais, correspondendo aos três lugares onde acontece (a casa,
a igreja e o cemitério) e segundo a importância que a ela atribuem a família,
os costumes locais, a cultura e a piedade popular. Vale lembrar que no tempo do
Brasil Colônia, somente o Bispo ou o padre poderiam oficiar as exéquias.
[1] Ainda o mesmo dicionário
Bluteau, afirma a honra como: “umas vezes é o respeito e reverência com que
tratamos as pessoas em razão da sua nobreza, dignidade, virtude ou outra
excelência. Outras vezes é o crédito e boa fama, adquirida com boas ações.
Outras vezes é a dignidade e proeminência de algum cargo na República”.
[2] BLUTEAU, Raphael.
[3] SILVA, Antonio de Moraes.
[4] PINTO, Luiz Maria da Silva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Você pode deixar seu comentário ou sua pergunta. O respeito e a reverência serão sempre bem vindas.